A INVASÃO
Serguei não parava com as mãos. Um saco. Odiava aquele seu
nervosismo. Por que se incomodar assim daquele jeito? Que se dane... Afinal,
tratava-se, no fundo no fundo, só dessa angústia que nunca se resolve, essa coisa
toda de existir. Preferia cegar de um olho a ter que se importar
tanto.
Assim pensava Serguei sobre a última resenha publicada
acerca de seu livro, recentemente lançado na pequena e latina capital. Com o
jornal no colo, bebia a segunda cerveja numa tarde qualquer na esquina da Dr.
Barata com a Travessa Aureliano.
E o que é literatura? me diga aí, nobre Sr. Crítico, pensava
em responder, machucado nos seus brios de pretenso e negado escritor, mudando
de posição na cadeira. E daí também que fosse só autobiografia disfarçada?,
continuava Serguei nos seus devaneios ressentidos. Certamente essa besta nunca
leu Bukowski. Dostoiévski, então, nem pensar. Quem escreveu mesmo Recordações
da Casa dos Mortos depois de passar dez anos preso na Sibéria, hein, Sr.
Crítico? A resposta pronta na ponta da caneta, o criticozinho metido a besta
veria só uma coisa...
É que Serguei, como qualquer ser humano, tinha sua parcela
de tolice. O escritor (pretenso) não percebia que, tal como o crítico literário
da cidade (pigarro...) que zombara de seu livro, também ele caía em definições
cabais e absolutas...
Mas outra parte de si pensava, por outro lado: e daí
responder a essa criatura, se a pergunta efetiva não cessa de ecoar:
Onde vai parar essa joça?
Assim, Serguei boiava em águas lentas de autopiedade, entre
outros pensamentos imperfeitos e vastas emoções, quando parou na calçada, junto
à sua mesa, um jovem senhor.
Em algum lugar da cidade, operários erguiam edifícios, para
o desespero do silêncio dos vizinhos.Em algum lugar da cidade, uma criança,
recentemente alfabetizada, escolhia um livro na estante da pequena sala de
leitura de sua escola. Em algum lugar da cidade, alguém machucava um coração.
Serguei encarou o jovem senhor à sua frente, já esperando,
certamente, algum pedido. O homem, vestido com terno preto e puído, calçando tênis
vermelhos, falou, com voz melodiosa:
- Na verdade, não é bem um pedido, e sim uma proposta...
Ligeiramente surpreso, Serguei continuou calado, colocando o
jornal sobre a mesa. O estranho, olhando para o impresso, indagou:
- Muita bobagem publicada para o dia de hoje?
Com essa, Serguei riu, animado.
- Eu diria até demais, para um dia só... Sabe como são os
jornalistas...
- Assim é a humanidade, sempre excesso. Poderia eu
sentar-me?
Curioso com aquela figura, seus modos, traços e linguagem,
estendeu a mão, apontando a cadeira. Por que não?
- Permita-me que me apresente – continuou a figura, com um
salamaleque teatral – Ossian, ao seu dispor.
- Serguei.
Trocaram apertos de mão e sorrisos. Serguei sentia-se cada
vez mais atraído. Que diabos quereria com ele aquela figura? Podia apostar que
vinha alguma facada. Perguntou:
- O amigo aceita um copo?
- Não, obrigado, beberei uma água mineral.
E fez o pedido para o rapaz que servia no bar. Depois que
ele deixou a garrafa sobre a mesa, o jovem senhor, observando o rapaz,
anunciou:
- Esse aí não dura muito...
- Viu na sua bola de cristal? - perguntou Serguei, divertido.
Em resposta, o homem apenas bebeu sua água: tomou de um só
gole todos os 500ml da garrafa, como se tivesse uma sede de eternidade.
- De que deserto você vem? – brincou Serguei, tentando
descobrir mais sobre aquela estranha figura.
- Vou lhe dizer mais – anunciou. E depois de uma pequena
pausa, prosseguiu:
- Pode escrever no seu caderno: logo mais eles chegarão.
- Eles quem?
- Os invasores.
Vixe, pensou Serguei, mais um doidinho da bola. Era
evidente, claro, como é que ele não tinha notado...
- Duvide você ou não, eles chegarão. Haverá pânico e terror
porque eles chegarão em multidão e em silêncio. Soldados
valentes prepararão suas armas, crentes histéricos clamarão suas preces,
templos e campos de batalha serão o foco das transmissões via rádio, televisão
e internet... Governantes confabularão, confusos, sobre o que fazer...
Serguei apenas ouvia, encantado com a verve apocalíptica do
homem. Pensou em mandá-lo pastar, de uma vez, mas, ao contrário, quis
provocá-lo, tentando ser irônico:
- Não me diga que são alienígenas... Ou é pura influência de Kaváfis...
- Mas ao susto inicial – prosseguiu o homem, sem parecer
ouvir Serguei – eles hão de se mostrar amistosos. E o mundo acreditará que são
amigos. E deixarão se seduzir. Entregarão presentes aos visitantes: flores em
jarros e quadros de pintura. Doces raros e livros contando sua história.
Serguei, inconscientemente, desviou o olhar do homem,
visualizando, mentalmente, a estranha cena descrita. A tarde seguia, lenta e
normalmente.
- Não haverá guerras, mas sim vencidos. Os invasores hão de
vencer. Tomarão conta das praias e montanhas, cercarão todas as mentes e
corpos, sem possibilidades de fuga.
Fez outra pequena pausa, antes de sentenciar:
- A humanidade não será mais escrava de si mesmo. Mas deles,
os outros.
E Serguei vislumbrou a multidão entorpecida, como se
lobotomizada, seguindo em levas, no mesmo passo, na direção daquele
desconhecido.
Até que um caminhão passou em frente ao bar onde estavam,
buzinando estrondosamente, despertando Serguei de seu ligeiro embevecimento.
Caiu em si:
- Que narrativa, hein?
O jovem senhor olhava para Serguei com olhos penetrantes.
- Pode escrever aí no seu caderno.
Serguei riu:
- Sim, claro, nem Stephen King conceberia...
- Mas tudo tem um preço.
Serguei parecia não ouvi-lo:
- Imagine o que o Senhor Crítico dirá, então...
O homem também não:
- Todos hão de ler sua história, durante muitos e muitos
anos...
- Sim, e certamente estará no top dos mais vendidos e...
Espera aí... Como sabe que eu escrevo?
- Mas tudo tem um preço.
- Que brincadeira é essa, hein?
Serguei foi ficando fulo. Imaginou alguns rostos, a
divertir-se com sua ingenuidade. Olhou ao redor, a fim de ver o dono da peça.
Ninguém. O rapaz do bar palitava os dentes, olhando o
abstrato, encostado no balcão. Um gato maltratado desfilava candidamente na
calçada em frente. Na
sarjeta, um bêbado ressonava o sono dos justos.
O homem levantou-se, empertigado. Tirou do bolso uma nota
novíssima:
- Para a água.
E fez outro cumprimento exagerado. Afastou-se, sem dizer
mais uma palavra, no seu terno preto e tênis vermelhos.
Serguei ficou ruminando aquele encontro inusitado. Cada tipo
que aparece...
Terminou sua cerveja, pediu outra. Pegou novamente o jornal
e pôs-se a ler outras matérias. Por fim, após alguns minutos, largou o jornal e
contemplou a tarde por um instante.
As mãos não tremiam mais. Então, pegou seu bloco de
anotações e começou a escrever vertiginosamente. E foi ali mesmo que seu olho esquerdo
começou a comichar.
Ainda que tardiamente, mas vá lá!
ResponderExcluirSó um cego da gota serena (pode ser do olho esquerdo) não vê a beleza deste conto.
Abraços (de olhos abertos)
Tião