BATISMO DE MERDA
O beco. O beco é aquele trecho entre o
explícito e o escuso, o possível e o inimaginável. Nos becos, gatos alucinam em
noites desvairadas, poetas perambulam com seus devaneios, bêbados desfilam suas
desmesuras, casais se derramam em paixão proibida. O beco é o território
transitório do improvável permitido, tornado real por um lapso de segundo,
lacuna errádica de um sonho.
Numa manhã de sábado, três amigos foram até o
beco fumar uma bituca. E eram jovens, e eram loucos, sedentos de vida, essa
vida de aventuras e de rotinas, como disse aquele autor, naquele livro. Fumavam
e suas mentes insanas projetavam delírios do que não se diz. Eram dois caras e
uma cara. Os três, nada de careta. Estavam ali, já nos espirais finais, quando
ela se assombra subitamente com a intenção do gesto:
- Vou pichar esse muro...
Ai, emoção! Ai vida que só vale se vivida!
Ela, criaturinha comportada e dentro de todas as
condutas ditadas, animou-se feito filhote de gatinho a brincar com o irmão bichano. E
se fez ali, então, felina pichadora. Pensou por menos de um minuto no que dizer
e um verso de Leminski lhe veio logo à mente.
Olhou de um lado, olhou de outro e foi. Os
amigos permaneceram onde estavam, candidamente sentados e chapados sobre a calçada,
a observar calmamente a cena.
Ela, autora e atriz, foi vivendo o instante, traçando
em letra cursiva as palavras do poeta, elevando-se um pouco a fim de não poluir
as outras imagens de grafite e picho que permeavam o muro do beco.
“Sentado não tem sent...
Nesse momento, seu corpo caiu no abismo. No
meio do caminho, uma fossa aberta tragou a aprendiz de pichadora, mais uma
entre tantos seres vivos que habitavam a cidade, que estavam no mundo, que
transitavam pela vida. O jato do spray assinalou no muro o fio que escorria
queda abaixo. Até a altura dos joelhos foi engolida pela lama do beco, suas
pernas a mergulhar na merda que, estranhamente cheirosa, lhe chamava para a
vida. Para o perfume da vida.
Que nada de mais um continho ordinário.
ResponderExcluirQue nada!É Alice N. cada vez mais incisiva!
È um belo de um desses de criptos de cânhamo!
Feito aquele em Pindaíba I de Augusto Filhote.
Felicito-vos Alice N. por sua pena existencialista
assim, além do Ser e o Nada, na estrada.
José Calixto
Ví-vos!
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