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Por que poesia impossível? Eis a questão. E
explico, ressaltando a incompletude de minha leitura, mesmo que toda leitura
seja necessariamente incompleta: trata-se de dois poetas que manifestam
intensamente o impossível da função literária que assinala Barthes, à sombra de
Lacan (2000, p. 22): dizer o real.
Assim,
percebo, pela obra desses dois, o impossível do poético em três aspectos que
discutirei neste texto: os além-nomes,
a confusão de linguagens e o desconcerto de temas. Impossíveis porque
habitam o entre que vai do siso ao riso, do pronto ao inacabado. Porque se
rebelam com a condição de que, novamente voltando a Roland Barthes, o fazer
poético tem a missão impossível de fazer caber numa ordem unidimensional – a
linguagem – aquilo que é pluridimensional – o real (BARTHES, 2000, p. 22).
Dos além-nomes
Se,
conforme afirma Maffesoli, que rompe com a lógica da identidade e pensa o ser
como identificações, a pessoa constrói-se na e pela comunicação (MAFFESOLI,
2005, p. 310), a criação artística é uma maneira então de reinventar-se
constantemente. Diante disso, esses poetas impossíveis no seu fazer poético,
não cabem num único nome porque um nome só não dá conta das possibilidades de
existência lúdica e artística.
Assim,
Francisco Alves da Silva é o Fransquim, é o Mister Boy, é o Falves Silva. Um
poeta em processo, contínuo, incessante em significações que oferece àquele que
se atreve na sua leitura. Para além do movimento literário POEMA-PROCESSO de 45
anos atrás, do qual foi um dos entusiastas praticantes e teóricos, Falves Silva
está aí, com seus projetos, colagens e versões. Falves não está nas livrarias e
nem integra as listas dos mais vendidos. Não tem contratos com grandes editoras
e nem é lido nas escolas. Não recebe convite da Academia Norte-rio-grandense de
Letras para falar de sua obra. No entanto, periférica e subterraneamente, ele
continua produzindo sua poesia impossível.
De maneira
semelhante, Jota Mombaça. Aliás, a alcunha é nome de uma pequena cidade perdida
no mapa cearense. Porque também só o nome José Gilberto não contempla as
variadas facetas dessa presença poética. Por isso também assina como Lobo
Errático, como quem diz, tal como seu perfil no Facebook: eu sou outro.
Evidentemente,
o uso de pseudônimos não é novidade na história da literatura. Que o digam
Linda Baptista e Nathália de Souza, respectivas personas de Carlão de Souza e
Nei Leandro de Castro, para citar apenas dois exemplos potiguares. O que
confirma o fazer poético como algo que está para além de identidades fechadas e
inequívocas e sim como, novamente reportando a Maffesoli, “o uso de máscaras
variáveis” (MAFFESOLI, 2005, p. 19).
Um, às
portas dos 69. Outro, vinte aninhos. Um afetado por influências do cinema e dos
quadrinhos, outro, atravessado por leituras filosóficas e acadêmicas. Como
fazê-los encontrar-se num mesmo bojo?
Falves Silva,
que entregava jornais quando menino e na maturidade produziu inúmeros catálogos
e jornais alternativos, trabalha em gráfica e circula pelos sebos da cidade,
sempre rodeado de livros e letras. É dos erros de impressão, aliás, que faz
suas invenções, atualizando a máxima de que o
diabo mora na tipografia.
Jota
Mombaça é estudante da UFRN (está no segundo curso) e manifesta sua presença em
momentos plurais, como por exemplo no BodeArte, nas Marchas da Maconha e das
Vadias, na Flipout (vertente alternativa da FliPipa) e também no Substantivo
Plural, interessante espaço cibernético de discussão promovido pelo jornalista
Tácito Costa.
Assim como
os além-nomes, outro traço do impossível da poesia desses dois me parece ser a
confusão de linguagens.
Da confusão de linguagens
A poesia de
Falves Silva extrapola as classificações convencionais e faz ranger os limites
entre o verbal e o não-verbal. Desde a primeira exposição em Natal da turma do
POEMA/PROCESSO, em 11 de dezembro de 1967, até as recentes produções artesanais
de seus livros (todos, invariavelmente, feitos à mão e com a capa toda em
branco), Falves Silva confunde. E incomoda. Conforme ele mesmo assinala, a
respeito da repercussão daquela primeira exposição, alguns afirmavam/afirmam: “isso não é poesia”.
E o que é a
poesia, gente ilustre? Se assumirmos uma perspectiva discursiva, tal como
aponta Michel Foucault, por exemplo, notaremos que por trás dessas definições
supostamente infalíveis sobre o que é ou não é poesia, há todo um cenário de
rituais entre sujeitos autorizados que legitimam aquilo que funciona como
literatura. A Universidade, aliás, faz parte desse jogo de seleção,
sacralização e valorização (FOUCAULT, 2006, p. 59).
Jota
Mombaça também confunde a si e ao outro na pluralidade de linguagens. Faz
poesia tanto por meio da escrita quanto por meio do corpo. Seus textos são uma
mistura de gêneros discursivos, em que os artigos são poéticos e os poemas são
ensaísticos. Como recursos para não se render ao impossível, Mombaça subverte a
grafia padrão (como no poema çoneto), ou mistura imagens díspares, como em
títulos tais quais Óperas silenciosas,
tímpanos estilhaçados. A
interrupção súbita das construções sintáticas também confunde, como no mesmo
poema Óperas silenciosas, tímpanos
estilhaçados:
becos, avenidas estreitas, esgotos,
gramachos,
sucessão de polaroides – e a hiroshima onde meus pés.
sucessão de polaroides – e a hiroshima onde meus pés.
Do desconcerto de temas
Não adianta
negar: mesmo depois de nomes como Rabelais ou Sade, alguns textos insistem em
nos desconcertar. O desconcerto destes dois poetas impossíveis está, sobretudo,
no incomensurável que ensejam, aquilo que é demasiado humano, como diria
Nietzsche, e que não tem peso nem medida.
O ser, que
não cabe em si, tão finito e paradoxalmente ilimitado no seu poder de criação e
destruição, nos seus abismos de sentimentos e sensações plurais e
contraditórios. Esse é um dos matizes do impossível na poesia dos dois. Esse
ser impossível de ser descrito e enjaulado numa única definição, tal como
indica no seu poema inexágono:
Nada me
reside
Há em mim falta de tudo
Mas sou habitado pelo trânsito.
Geometria incalculável me desenho:
Inexágono,
Estilhaço sanguinolento caindo como chuva.
Há em mim falta de tudo
Mas sou habitado pelo trânsito.
Geometria incalculável me desenho:
Inexágono,
Estilhaço sanguinolento caindo como chuva.
A
inexatidão humana só pode ser sugerida por aquilo que Barthes nomeia como anarquia languageira (BARTHES, 2000, p.
28). Como no texto Toque de Exu para
Bartebly, em que só mesmo o encontro entre o ambíguo orixá e o personagem
literário de Herman Melville para expressar isso que o escritor tcheco chamou
de “insustentável leveza do ser”. Nesse texto, lê-se como epígrafe...
minha vida não vale nada, e já pesa. Os filhos perguntam:
“pai, você quer um mundo melhor?”
“fomos expulsos do mundo melhor.”
E calo.
Eles insistem: “então que fazer dessa humanidade?”
“à humanidade só nos resta desertá-la.”
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Chego,
então, ao fim deste texto e me pergunto o que falta dizer. Mentalmente,
vislumbro uma galeria de tipos com quem tenho aprendido alguma coisa: com Zila
Mamede, sobre os mistérios do mar e da vida; com Palmyra Wanderley e Jorge
Fernandes, sobre as simplicidades tocantes, as dos bairros natalenses ou as das
quebradas do agreste e do sertão; com Newton Navarro, sobre a errância de
paisagens e de personas; com Eulício de Farias Lacerda, as estratégias de um
bom conto; com Volonté, as dobras do poder de síntese...
E com
Falves Silva e Jota Mombaça, o que aprendo com estes dois poetas impossíveis?
Aprendo que
é preciso insistir em desaprender também. Esquecer a comodidade da leitura
fácil, linear e convencional. Aceitar o intolerável, admitir o desconfortável,
perceber a complexidade. Permitir-se ao estranhamento que esses dois, nos seus
além-nomes, nas suas confusões de linguagens e no seus desconcertantes temas,
têm a nos dizer sobre o indizível: o humano, o mundo, a vida e tudo o mais.
Referências Bibliográficas
BARTHES,
Roland. Aula. Tradução de Leyla
Perrone-Moisés. 8ª. Ed. São Paulo: Cultrix, 2000.
FOUCAULT,
Michel. Desembarçar-se da filosofia: sobre
literatura. In: POL-DROIT, Roger. (org.) Michel
Foucault: entrevistas. Tradução de Vera Portocarrero e Gilda Gomes
Carneiro. São Paulo: Graal, 2006.
MAFFESOLI,
Michel. No fundo das aparências. Tradução
de Bertha Halpen Gurovitz. 3ª. Ed. São Paulo: Vozes, 2005.
Alice N. que bacana conhecer e compreender, um pouco, da vizinha literatura potiguar e alguns literatos de poìsêis impossível.
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