quinta-feira, 28 de junho de 2012

MAIS UM CONTINHO ORDINÁRIO


A INVASÃO

Serguei não parava com as mãos. Um saco. Odiava aquele seu nervosismo. Por que se incomodar assim daquele jeito? Que se dane... Afinal, tratava-se, no fundo no fundo, só dessa angústia que nunca se resolve, essa coisa toda de existir. Preferia cegar de um olho a ter que se importar tanto.
Assim pensava Serguei sobre a última resenha publicada acerca de seu livro, recentemente lançado na pequena e latina capital. Com o jornal no colo, bebia a segunda cerveja numa tarde qualquer na esquina da Dr. Barata com a Travessa Aureliano.
E o que é literatura? me diga aí, nobre Sr. Crítico, pensava em responder, machucado nos seus brios de pretenso e negado escritor, mudando de posição na cadeira. E daí também que fosse só autobiografia disfarçada?, continuava Serguei nos seus devaneios ressentidos. Certamente essa besta nunca leu Bukowski. Dostoiévski, então, nem pensar. Quem escreveu mesmo Recordações da Casa dos Mortos depois de passar dez anos preso na Sibéria, hein, Sr. Crítico? A resposta pronta na ponta da caneta, o criticozinho metido a besta veria só uma coisa...
É que Serguei, como qualquer ser humano, tinha sua parcela de tolice. O escritor (pretenso) não percebia que, tal como o crítico literário da cidade (pigarro...) que zombara de seu livro, também ele caía em definições cabais e absolutas...
Mas outra parte de si pensava, por outro lado: e daí responder a essa criatura, se a pergunta efetiva não cessa de ecoar:
Onde vai parar essa joça?
Assim, Serguei boiava em águas lentas de autopiedade, entre outros pensamentos imperfeitos e vastas emoções, quando parou na calçada, junto à sua mesa, um jovem senhor.
Em algum lugar da cidade, operários erguiam edifícios, para o desespero do silêncio dos vizinhos.Em algum lugar da cidade, uma criança, recentemente alfabetizada, escolhia um livro na estante da pequena sala de leitura de sua escola. Em algum lugar da cidade, alguém machucava um coração.
Serguei encarou o jovem senhor à sua frente, já esperando, certamente, algum pedido. O homem, vestido com terno preto e puído, calçando tênis vermelhos, falou, com voz melodiosa:
- Na verdade, não é bem um pedido, e sim uma proposta...
Ligeiramente surpreso, Serguei continuou calado, colocando o jornal sobre a mesa. O estranho, olhando para o impresso, indagou:
- Muita bobagem publicada para o dia de hoje?
Com essa, Serguei riu, animado.
- Eu diria até demais, para um dia só... Sabe como são os jornalistas...
- Assim é a humanidade, sempre excesso. Poderia eu sentar-me?
Curioso com aquela figura, seus modos, traços e linguagem, estendeu a mão, apontando a cadeira. Por que não?
- Permita-me que me apresente – continuou a figura, com um salamaleque teatral – Ossian, ao seu dispor.
- Serguei.
Trocaram apertos de mão e sorrisos. Serguei sentia-se cada vez mais atraído. Que diabos quereria com ele aquela figura? Podia apostar que vinha alguma facada. Perguntou:
- O amigo aceita um copo?
- Não, obrigado, beberei uma água mineral.
E fez o pedido para o rapaz que servia no bar. Depois que ele deixou a garrafa sobre a mesa, o jovem senhor, observando o rapaz, anunciou:
- Esse aí não dura muito...
- Viu na sua bola de cristal?  - perguntou Serguei, divertido.
Em resposta, o homem apenas bebeu sua água: tomou de um só gole todos os 500ml da garrafa, como se tivesse uma sede de eternidade.
- De que deserto você vem? – brincou Serguei, tentando descobrir mais sobre aquela estranha figura.
- Vou lhe dizer mais – anunciou. E depois de uma pequena pausa, prosseguiu:
- Pode escrever no seu caderno: logo mais eles chegarão.
- Eles quem?
- Os invasores.
Vixe, pensou Serguei, mais um doidinho da bola. Era evidente, claro, como é que ele não tinha notado...
- Duvide você ou não, eles chegarão. Haverá pânico e terror porque eles chegarão em multidão e em silêncio. Soldados valentes prepararão suas armas, crentes histéricos clamarão suas preces, templos e campos de batalha serão o foco das transmissões via rádio, televisão e internet... Governantes confabularão, confusos, sobre o que fazer...
Serguei apenas ouvia, encantado com a verve apocalíptica do homem. Pensou em mandá-lo pastar, de uma vez, mas, ao contrário, quis provocá-lo, tentando ser irônico:
- Não me diga que são alienígenas... Ou é pura influência de Kaváfis...
- Mas ao susto inicial – prosseguiu o homem, sem parecer ouvir Serguei – eles hão de se mostrar amistosos. E o mundo acreditará que são amigos. E deixarão se seduzir. Entregarão presentes aos visitantes: flores em jarros e quadros de pintura. Doces raros e livros contando sua história.
Serguei, inconscientemente, desviou o olhar do homem, visualizando, mentalmente, a estranha cena descrita. A tarde seguia, lenta e normalmente.
- Não haverá guerras, mas sim vencidos. Os invasores hão de vencer. Tomarão conta das praias e montanhas, cercarão todas as mentes e corpos, sem possibilidades de fuga.
Fez outra pequena pausa, antes de sentenciar:
- A humanidade não será mais escrava de si mesmo. Mas deles, os outros.
E Serguei vislumbrou a multidão entorpecida, como se lobotomizada, seguindo em levas, no mesmo passo, na direção daquele desconhecido.
Até que um caminhão passou em frente ao bar onde estavam, buzinando estrondosamente, despertando Serguei de seu ligeiro embevecimento. Caiu em si:
- Que narrativa, hein?
O jovem senhor olhava para Serguei com olhos penetrantes.
- Pode escrever aí no seu caderno.
Serguei riu:
- Sim, claro, nem Stephen King conceberia...
- Mas tudo tem um preço.
Serguei parecia não ouvi-lo:
- Imagine o que o Senhor Crítico dirá, então...
O homem também não:
- Todos hão de ler sua história, durante muitos e muitos anos...
- Sim, e certamente estará no top dos mais vendidos e... Espera aí... Como sabe que eu escrevo?
- Mas tudo tem um preço.
- Que brincadeira é essa, hein?
Serguei foi ficando fulo. Imaginou alguns rostos, a divertir-se com sua ingenuidade. Olhou ao redor, a fim de ver o dono da peça.
Ninguém. O rapaz do bar palitava os dentes, olhando o abstrato, encostado no balcão. Um gato maltratado desfilava candidamente na calçada em frente. Na sarjeta, um bêbado ressonava o sono dos justos.
O homem levantou-se, empertigado. Tirou do bolso uma nota novíssima:
- Para a água.
E fez outro cumprimento exagerado. Afastou-se, sem dizer mais uma palavra, no seu terno preto e tênis vermelhos.
Serguei ficou ruminando aquele encontro inusitado. Cada tipo que aparece...
Terminou sua cerveja, pediu outra. Pegou novamente o jornal e pôs-se a ler outras matérias. Por fim, após alguns minutos, largou o jornal e contemplou a tarde por um instante.
As mãos não tremiam mais. Então, pegou seu bloco de anotações e começou a escrever vertiginosamente. E foi ali mesmo que seu olho esquerdo começou a comichar.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

LUNA

        A
      LUA
      VEM
      VAI
     LEVA
   E TRÁS
 NA FRENTE
 POR TRÁS
DE TODO JEITO
     E VIVE
      E JAZ
    ESTE SER
IMPERFEITO
          E
  LUNÁTICO

quarta-feira, 20 de junho de 2012

PICHAÇÃO NA ESCOLA

PICHAÇÃO NA ESCOLA
Assisto pela TV em noticiário local à notícia de que uma escola pública estadual foi pichada. A escola, tradicional, localizada no bairro do Alecrim, em Natal, funciona, ao que parece, em um prédio da Marinha. Sim, havia tinta na porta da direção, sobre mesas e cadeiras, sobre trabalhos escolares dos alunos e até mesmo em um aparelho de televisão. Mas as definições dos jornalistas (âncora e repórter da matéria) para o ato foram muito mais contundentes que as imagens mostradas: supostamente havia inscrições, mas estas não foram mostradas e sim enfaticamente anunciadas como sendo “palavras de baixo calão”. Os autores, desconhecidos, taxados como “vândalos”. E todo o ato de pichar uma escola ficou reduzido a “desrespeito ao patrimônio”. E só.
Antes de cair em lamentações sobre o mundo que está perdido com a juventude de hoje ou sobre tudo ser culpa do crack (aliás, curiosamente o tema da reportagem anterior no mesmo noticiário), fico pensando na força emblemática desse ato. Antes de considerá-lo como um mal (ou um bem?) em si mesmo, penso no seu caráter político, ainda que seus autores talvez não tivessem o menor interesse nisso ou projetassem a condição simbólica a qual, depois de feito, o ato de pichar uma escola pode assumir.
Não deixa de ser triste, evidentemente, pensar no sentimento de rejeição que mães, professores e alunos dessa escola podem ter sentido. Picharam nossa escola! Cada jato do spray de tinta deve ter jorrado como um cuspe de desprezo sobre a instituição que, ruim ou boa, faz parte de nosso cotidiano, nossa vida.
Mas que escola é essa? Como estão as suas estruturas físicas? Seus professores são devidamente pagos e bem capacitados? Mais do que uma obrigação regida por lei, a educação pública é mesmo de qualidade? Seus gestores, em todas as esferas, se preocupam de fato com a aprendizagem dos estudantes? As verbas são equitativamente suficientes?
Não quero dizer que as possíveis respostas para essas questões justifiquem tal ato. Mas penso que, além de ser um debate que deve vir sempre em primeiro lugar quando se discute a escola, talvez estejam aí as condições de possibilidade para que esse ato, e não outro, fosse realizado.
Por que os autores das pichações escolheram especificamente uma escola para pichar? Por que não apenas mais um muro da cidade? Será a adrenalina maior? O desejo de aparecer na grande mídia e reconhecer-se, em grupos subterrâneos, como os “heróis” de tal empreitada? Apenas resultado de uma mente “anormal”?
Volto a insistir na dimensão de poder que esse gesto de pichar uma escola representa. Não o poder econômico, central, que se exerce supostamente apenas de cima para baixo, mas o poder difuso, que se exerce a todo o momento, em todo tipo de relação e em pequenas instâncias, nas microfísicas de uma sociedade que de ordenada e serena não tem nada. Por mais que haja grupos, rituais, organismos e dispositivos que insistem em manter/aparentar certa ordem e escamotear o esfacelamento dessa sociedade, da escuridão do silenciamento e da exclusão, aqueles considerados como restos teimam em vir à tona, rangem dentes e mostram a sua fúria com seu cuspe de desprezo.
O ato de pichar uma escola me parece um grito. Seja um grito revoltado, seja um grito cínico, o grito de alguém que diz: existo!

terça-feira, 19 de junho de 2012

MAIS UM CONTINHO ORDINÁRIO

O SONHO DE LILA
Depois que consegui enfim despistar aquele primo de Cérbero, monstruoso cão que não deixava aproximar-me da Casa, dei a volta pelo quintal e cheguei à janela dos fundos.
Por ali eu vi. Vi o escritor em sua mesa de estudo, cercado de livros, jornais, manuscritos e papeis de toda sorte, espalhados por todos os lados. Lia um periódico em que o crítico zombava de sua última publicação, pechando-lhe de autobiografia disfarçada e, enquanto lia a resenha maliciosa e categórica, as águas chegaram e foram aos poucos invadindo o aposento.
Pouco a pouco, tomavam conta de tudo, arrastando silenciosamente e em movimentos de lento espiral  os restos e langanhas de cada brecha do lugar. O pequeno quarto ia se tornando aquário abandonado, tragado pela estranheza e escuridão.
E dali de fora eu observava toda a cena, vendo o escritor ainda sentado tranquilamente à sua escrivaninha, o periódico onde se lia a crítica ainda à frente. A água também lhe embebia, fazendo submergir pés, pernas e joelhos a cada segundo. E vi que, antes de sumir para sempre em meio às anotações flutuantes que boiavam ao redor, vi que ele se virou em direção à janela e olhou para mim.
Tudo tão swfit, tudo tão soft... Nem James Joyce conceberia o peso da leveza daquele olhar.
Foi quando vi, no canto da mesa. Ele pareceu também adivinhar meu pensamento e olhou também para o aparelho velho e negro do telefone. Talvez, uma possibilidade de última chance antes do mergulho total no abismo. Ele pegou o fone, pôs ao ouvido e...
- Lila!
O celular de Lila tocava na mesinha de cabeceira, junto ao “Ulisses”. Assustada, ela ergueu-se de um salto, no meio da madrugada. No visor, viu desorientada o número quase igual ao seu: 99154365. Um dígito de diferença. A distância entre vida e ficção. Sonho e realidade.
Lá fora, um cachorro latia madrugada afora.

domingo, 10 de junho de 2012

DOIS POETAS IMPOSSÍVEIS

A propósito da mesa-redonda (que, na verdade, acabou se configurando como um bom bate-papo) de abrtura do projeto "O livro e suas representações culturais", seguem trechos do artigo que preparei para abordar o tema " A iteratura potiguar na atualidaade", com minhas impressões sobre dois autores que, de algum modo, estão às margens do circuito profissional do livro - um que faz seus livros artesanalmente a partir de colagens e versões  e outro que publica esporadicamente na blogesfera - Falves Silva e Jota Mombaça. Infelizmente, as imagens não foram possíveis de serem reproduzidas aqui. Para quem se atrever, boa leitura!

***


Por que poesia impossível? Eis a questão. E explico, ressaltando a incompletude de minha leitura, mesmo que toda leitura seja necessariamente incompleta: trata-se de dois poetas que manifestam intensamente o impossível da função literária que assinala Barthes, à sombra de Lacan (2000, p. 22): dizer o real.

Assim, percebo, pela obra desses dois, o impossível do poético em três aspectos que discutirei neste texto: os além-nomes, a confusão de linguagens e o desconcerto de temas. Impossíveis porque habitam o entre que vai do siso ao riso, do pronto ao inacabado. Porque se rebelam com a condição de que, novamente voltando a Roland Barthes, o fazer poético tem a missão impossível de fazer caber numa ordem unidimensional – a linguagem – aquilo que é pluridimensional – o real (BARTHES, 2000, p. 22).

Dos além-nomes

Se, conforme afirma Maffesoli, que rompe com a lógica da identidade e pensa o ser como identificações, a pessoa constrói-se na e pela comunicação (MAFFESOLI, 2005, p. 310), a criação artística é uma maneira então de reinventar-se constantemente. Diante disso, esses poetas impossíveis no seu fazer poético, não cabem num único nome porque um nome só não dá conta das possibilidades de existência lúdica e artística.

Assim, Francisco Alves da Silva é o Fransquim, é o Mister Boy, é o Falves Silva. Um poeta em processo, contínuo, incessante em significações que oferece àquele que se atreve na sua leitura. Para além do movimento literário POEMA-PROCESSO de 45 anos atrás, do qual foi um dos entusiastas praticantes e teóricos, Falves Silva está aí, com seus projetos, colagens e versões. Falves não está nas livrarias e nem integra as listas dos mais vendidos. Não tem contratos com grandes editoras e nem é lido nas escolas. Não recebe convite da Academia Norte-rio-grandense de Letras para falar de sua obra. No entanto, periférica e subterraneamente, ele continua produzindo sua poesia impossível. 

De maneira semelhante, Jota Mombaça. Aliás, a alcunha é nome de uma pequena cidade perdida no mapa cearense. Porque também só o nome José Gilberto não contempla as variadas facetas dessa presença poética. Por isso também assina como Lobo Errático, como quem diz, tal como seu perfil no Facebook: eu sou outro.

Evidentemente, o uso de pseudônimos não é novidade na história da literatura. Que o digam Linda Baptista e Nathália de Souza, respectivas personas de Carlão de Souza e Nei Leandro de Castro, para citar apenas dois exemplos potiguares. O que confirma o fazer poético como algo que está para além de identidades fechadas e inequívocas e sim como, novamente reportando a Maffesoli, “o uso de máscaras variáveis” (MAFFESOLI, 2005, p. 19).

Um, às portas dos 69. Outro, vinte aninhos. Um afetado por influências do cinema e dos quadrinhos, outro, atravessado por leituras filosóficas e acadêmicas. Como fazê-los encontrar-se num mesmo bojo?

Falves Silva, que entregava jornais quando menino e na maturidade produziu inúmeros catálogos e jornais alternativos, trabalha em gráfica e circula pelos sebos da cidade, sempre rodeado de livros e letras. É dos erros de impressão, aliás, que faz suas invenções, atualizando a máxima de que o diabo mora na tipografia.

Jota Mombaça é estudante da UFRN (está no segundo curso) e manifesta sua presença em momentos plurais, como por exemplo no BodeArte, nas Marchas da Maconha e das Vadias, na Flipout (vertente alternativa da FliPipa) e também no Substantivo Plural, interessante espaço cibernético de discussão promovido pelo jornalista Tácito Costa.

Assim como os além-nomes, outro traço do impossível da poesia desses dois me parece ser a confusão de linguagens.

Da confusão de linguagens

A poesia de Falves Silva extrapola as classificações convencionais e faz ranger os limites entre o verbal e o não-verbal. Desde a primeira exposição em Natal da turma do POEMA/PROCESSO, em 11 de dezembro de 1967, até as recentes produções artesanais de seus livros (todos, invariavelmente, feitos à mão e com a capa toda em branco), Falves Silva confunde. E incomoda. Conforme ele mesmo assinala, a respeito da repercussão daquela primeira exposição, alguns afirmavam/afirmam: “isso não é poesia”.

E o que é a poesia, gente ilustre? Se assumirmos uma perspectiva discursiva, tal como aponta Michel Foucault, por exemplo, notaremos que por trás dessas definições supostamente infalíveis sobre o que é ou não é poesia, há todo um cenário de rituais entre sujeitos autorizados que legitimam aquilo que funciona como literatura. A Universidade, aliás, faz parte desse jogo de seleção, sacralização e valorização (FOUCAULT, 2006, p. 59).

Mas Falves Silva parece não se importar muito com esse jogo. Cata páginas com erros de impressão, recorta figuras de revistas velhas e panfletos ordinários, junta tudo e ressignifica imagens, palavras, sentidos em poesia visual. O seu fazer poético jorra dali, de onde menos se espera, dos restos, do que ninguém parece enxergar.

Jota Mombaça também confunde a si e ao outro na pluralidade de linguagens. Faz poesia tanto por meio da escrita quanto por meio do corpo. Seus textos são uma mistura de gêneros discursivos, em que os artigos são poéticos e os poemas são ensaísticos. Como recursos para não se render ao impossível, Mombaça subverte a grafia padrão (como no poema çoneto), ou mistura imagens díspares, como em títulos tais quais Óperas silenciosas, tímpanos estilhaçados. A interrupção súbita das construções sintáticas também confunde, como no mesmo poema Óperas silenciosas, tímpanos estilhaçados:

becos, avenidas estreitas, esgotos, gramachos,
sucessão de polaroides – e a hiroshima onde meus pés.

Do desconcerto de temas

Não adianta negar: mesmo depois de nomes como Rabelais ou Sade, alguns textos insistem em nos desconcertar. O desconcerto destes dois poetas impossíveis está, sobretudo, no incomensurável que ensejam, aquilo que é demasiado humano, como diria Nietzsche, e que não tem peso nem medida.

O ser, que não cabe em si, tão finito e paradoxalmente ilimitado no seu poder de criação e destruição, nos seus abismos de sentimentos e sensações plurais e contraditórios. Esse é um dos matizes do impossível na poesia dos dois. Esse ser impossível de ser descrito e enjaulado numa única definição, tal como indica no seu poema inexágono:

Nada me reside
Há em mim falta de tudo
Mas sou habitado pelo trânsito.

Geometria incalculável me desenho:
Inexágono,
Estilhaço sanguinolento caindo como chuva.

A inexatidão humana só pode ser sugerida por aquilo que Barthes nomeia como anarquia languageira (BARTHES, 2000, p. 28). Como no texto Toque de Exu para Bartebly, em que só mesmo o encontro entre o ambíguo orixá e o personagem literário de Herman Melville para expressar isso que o escritor tcheco chamou de “insustentável leveza do ser”. Nesse texto, lê-se como epígrafe...

minha vida não vale nada, e já pesa. Os filhos perguntam:

“pai, você quer um mundo melhor?”

“fomos expulsos do mundo melhor.”

E calo.

Eles insistem: “então que fazer dessa humanidade?”

“à humanidade só nos resta desertá-la.”

Mas enquanto Jota Mombaça bebe no tom sisudo para falar do imensurável humano, por outro lado Falves Silva brinca com as solenidades, apela para o humor ao escancarar o que se esconde por baixo dos discursos oficiais cheios de “bom-tom”. Como disse Dailor Varela, “Falves está sempre partindo para OUTRA. OUTRAS EXPERIMENTAÇÕES.”


 Assim, entre o antepassado e o antecipado, o velho e o novo, o riso e o siso se encontram num espaço-tempo impossível. e chaga assim o instante de concluir o que não se conclui.

Chego, então, ao fim deste texto e me pergunto o que falta dizer. Mentalmente, vislumbro uma galeria de tipos com quem tenho aprendido alguma coisa: com Zila Mamede, sobre os mistérios do mar e da vida; com Palmyra Wanderley e Jorge Fernandes, sobre as simplicidades tocantes, as dos bairros natalenses ou as das quebradas do agreste e do sertão; com Newton Navarro, sobre a errância de paisagens e de personas; com Eulício de Farias Lacerda, as estratégias de um bom conto; com Volonté, as dobras do poder de síntese...

E com Falves Silva e Jota Mombaça, o que aprendo com estes dois poetas impossíveis?

Aprendo que é preciso insistir em desaprender também. Esquecer a comodidade da leitura fácil, linear e convencional. Aceitar o intolerável, admitir o desconfortável, perceber a complexidade. Permitir-se ao estranhamento que esses dois, nos seus além-nomes, nas suas confusões de linguagens e no seus desconcertantes temas, têm a nos dizer sobre o indizível: o humano, o mundo, a vida e tudo o mais.

Referências Bibliográficas

BARTHES, Roland. Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. 8ª. Ed. São Paulo: Cultrix, 2000.

FOUCAULT, Michel. Desembarçar-se da filosofia: sobre literatura. In: POL-DROIT, Roger. (org.) Michel Foucault: entrevistas. Tradução de Vera Portocarrero e Gilda Gomes Carneiro. São Paulo: Graal, 2006.

MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Tradução de Bertha Halpen Gurovitz. 3ª. Ed. São Paulo: Vozes, 2005.




segunda-feira, 4 de junho de 2012

"A LITERATURA POTIGUAR NA ATUALIDADE"

Projeto "O Livro e Suas Representações Culturais"

No próximo dia 5 de Junho, às 18h30, a Cooperativa Cultural Universitária dará início ao projeto “O Livro e Suas Representações Culturais”. O projeto foi aprovado com nota máxima no Edital PROCULTURA PARA PROGRAMAÇÃO CULTURAL DE LIVRARIAS, por intermédio do Ministério da Cultura, representado pela Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura e pela Secretaria de Articulação Institucional. Serão mesas redondas, saraus, oficinas literárias, exibição de filmes, exposição, apresentações musicais e teatrais.

O projeto é composto de 10 eventos que serão realizados nas dependências da Cooperativa Cultural durante o ano de 2012. O primeiro evento será uma mesa redonda com o tema “A Literatura Potiguar na Atualidade” e será composta pelo jornalista Alexis Peixoto (mediador), Tarcísio Gurgel (escritor e professor do Departamento de Letras da UFRN), Cellina Rodrigues Muniz (professora do Departamento de Letras da UFRN) e Nelson Patriota (escritor e colunista do jornal Tribuna do Norte).

Os eventos terão como elemento principal o livro e os seus desdobramentos em outras representações artísticas como na composição musical, na representação cênica, na cinematografia. O projeto “O Livro e Suas Representações Culturais” proporcionará uma multiplicidade de ações culturais, a difusão e transmissão do conhecimento, a conservação do patrimônio artístico e cultural local e nacional, o incentivo à leitura e a formação de leitores.

Mesa “A Literatura Potiguar na Atualidade”
Data: 5 de junho, às 18h30
Local: Galeria do NAC – Centro de Convivência (UFRN) Djalma Marinho

domingo, 3 de junho de 2012

MAIS UM CONTINHO ORDINÁRIO

BATISMO DE MERDA

 



O beco. O beco é aquele trecho entre o explícito e o escuso, o possível e o inimaginável. Nos becos, gatos alucinam em noites desvairadas, poetas perambulam com seus devaneios, bêbados desfilam suas desmesuras, casais se derramam em paixão proibida. O beco é o território transitório do improvável permitido, tornado real por um lapso de segundo, lacuna errádica de um sonho.
Numa manhã de sábado, três amigos foram até o beco fumar uma bituca. E eram jovens, e eram loucos, sedentos de vida, essa vida de aventuras e de rotinas, como disse aquele autor, naquele livro. Fumavam e suas mentes insanas projetavam delírios do que não se diz. Eram dois caras e uma cara. Os três, nada de careta. Estavam ali, já nos espirais finais, quando ela se assombra subitamente com a intenção do gesto:
- Vou pichar esse muro...
Ai, emoção! Ai vida que só vale se vivida!
Ela, criaturinha comportada e dentro de todas as condutas ditadas, animou-se feito filhote de gatinho a brincar com o irmão bichano. E se fez ali, então, felina pichadora. Pensou por menos de um minuto no que dizer e um verso de Leminski lhe veio logo à mente.
Olhou de um lado, olhou de outro e foi. Os amigos permaneceram onde estavam, candidamente sentados e chapados sobre a calçada, a observar calmamente a cena.
Ela, autora e atriz, foi vivendo o instante, traçando em letra cursiva as palavras do poeta, elevando-se um pouco a fim de não poluir as outras imagens de grafite e picho que permeavam o muro do beco.
“Sentado não tem sent...
Nesse momento, seu corpo caiu no abismo. No meio do caminho, uma fossa aberta tragou a aprendiz de pichadora, mais uma entre tantos seres vivos que habitavam a cidade, que estavam no mundo, que transitavam pela vida. O jato do spray assinalou no muro o fio que escorria queda abaixo. Até a altura dos joelhos foi engolida pela lama do beco, suas pernas a mergulhar na merda que, estranhamente cheirosa, lhe chamava para a vida. Para o perfume da vida.