terça-feira, 19 de junho de 2012

MAIS UM CONTINHO ORDINÁRIO

O SONHO DE LILA
Depois que consegui enfim despistar aquele primo de Cérbero, monstruoso cão que não deixava aproximar-me da Casa, dei a volta pelo quintal e cheguei à janela dos fundos.
Por ali eu vi. Vi o escritor em sua mesa de estudo, cercado de livros, jornais, manuscritos e papeis de toda sorte, espalhados por todos os lados. Lia um periódico em que o crítico zombava de sua última publicação, pechando-lhe de autobiografia disfarçada e, enquanto lia a resenha maliciosa e categórica, as águas chegaram e foram aos poucos invadindo o aposento.
Pouco a pouco, tomavam conta de tudo, arrastando silenciosamente e em movimentos de lento espiral  os restos e langanhas de cada brecha do lugar. O pequeno quarto ia se tornando aquário abandonado, tragado pela estranheza e escuridão.
E dali de fora eu observava toda a cena, vendo o escritor ainda sentado tranquilamente à sua escrivaninha, o periódico onde se lia a crítica ainda à frente. A água também lhe embebia, fazendo submergir pés, pernas e joelhos a cada segundo. E vi que, antes de sumir para sempre em meio às anotações flutuantes que boiavam ao redor, vi que ele se virou em direção à janela e olhou para mim.
Tudo tão swfit, tudo tão soft... Nem James Joyce conceberia o peso da leveza daquele olhar.
Foi quando vi, no canto da mesa. Ele pareceu também adivinhar meu pensamento e olhou também para o aparelho velho e negro do telefone. Talvez, uma possibilidade de última chance antes do mergulho total no abismo. Ele pegou o fone, pôs ao ouvido e...
- Lila!
O celular de Lila tocava na mesinha de cabeceira, junto ao “Ulisses”. Assustada, ela ergueu-se de um salto, no meio da madrugada. No visor, viu desorientada o número quase igual ao seu: 99154365. Um dígito de diferença. A distância entre vida e ficção. Sonho e realidade.
Lá fora, um cachorro latia madrugada afora.

Um comentário:

  1. Pura verdade, Alice N.
    O aparelho velho e negro já foi ficção, assim como ficção também já foi o celular.

    Viva a literatura, a danada. A danada mistura tudo e produz um texto assim.

    Valeu!
    Abraços não fccionais,
    Tião

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