quarta-feira, 29 de junho de 2011

MAIS UM CONTINHO ORDINÁRIO



VIVA SÃO JOÃO!
Como contar um conto? Como dizer o indizível?
Pois o narrador não sabe como, narrador nenhum saberia. O fato é que Natã decidiu morrer.
Acelerou o carro em direção à Ponte Newton Navarro. Dos 60, rapidamente alcançou os 120 quilômetros por hora. Ao lado, o mar muito verde a se chocar contra o muito azul do céu, num sem fim de beleza. Lá embaixo, sob a queda do horror que se anunciava, segundos de abismo. Ponte para a morte.
Para Natã, a morte era mais do que certa, era presença inconteste. Mas ele só não contava com uma coisa, o carro que ia passando mais veloz do que o dele, ultrapassando-o. Ao passar por ele, viu de relance, estampado no vidro do banco de trás, o rosto de uma menininha.
Era ela.
Ela.
Ela, de mais de quarenta anos atrás, ela, das quebradas do tempo e da cidade de interior em que os dois viviam, na infância.
A coleguinha de rua. Mais nova que ele uns três anos. Uma coleguinha apenas.
Mas em uma noite de São João...
Na noite de São João, não há prata na fogueira que resolva a angústia do viver. Não há cerveja gelada ou palavra de crente que dissolva essa verdade, não há ponte que faça escapar disso.
24 de junho. Dia em que Assu libertou seus escravos e a baronesa serviu grande banquete para os seus, num ritual de despedida. Dia em que os dois, crianças, se encontraram, logo depois da apresentação do Auto.
Ao redor, o mundo: bandeirinhas e arrasta-pé, churrasco de coração de galinha e milho assado, gatos sonsos e descuidistas, olhares e fofocas, risos e brigas. E ele, enroscado a ela pelo descuido da sorte, não entendia outra linguagem que a da brutalidade – assim, brincar era beliscar, bater, ameaçar torcer o bracinho dela, puxar-lhe os cabelos. Ela resistia. Mas, com efeito, não saía de perto dele. Parecia gostar.
Com Assu, com afeto, assim dizia a placa na cidade.
Mas há de sempre chegar um instante em que, de tão doce, a coisa toda desonera. Ou de tanto fel, como as pancadas dele. Até que ela cansou e sumiu.
Não a via mais pela rua. Depois soube, casualmente: a família se mudou para outra cidade.
E como foi que Natã, durante todo aquele tempo, havia esquecido aquela noite, aquela menina? Lembrou-se, diante de tanto esquecimento, o rápido momento daquela noite de São João em que, deixando de lado por um instante sua manha de mau, permitiu-lhe um carinho, levando-a montada nos quartos, como se fosse uma mula.
Desacelerou, subitamente, quase fazendo cantar os pneus. Em algum lugar, uma guitarra gritou. Em algum lugar, um grito gemeu.
E não é que era uma mula mesmo?



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