sexta-feira, 17 de agosto de 2012

A minha primeira vez com Raul Seixas

A minha primeira vez com Raul Seixas
A primeira vez em que ouvi Raul Seixas foi tão brutalmente banal, tão corriqueiramente chocante, tão vida que, realmente, não dá para esquecer essa primeira vez.
Acho que eu tinha meus treze anos, ou seja: era mais retardada ainda e com uma carinha de enjoada ainda mais acentuada. E também já não tinha juízo nenhum na tola cabecinha.
Mas os 13 são de tocar e revelar.
E com treze, eu sentia (e não percebia) que eu queria salvar o mundo para ver se me salvava também, lá no fundo. Num futuro remoto, eu acreditava que a felicidade se faria.
Então eu lia. E comecei também a escrever.
Um dia, ao voltar da escola, subi no ônibus (numa fase que nem pesava tanto, como a que se seguiu logo depois dessa) que me levaria de volta para casa. Eram doze horas, o sol solava sobre a cabeça e os hormônios começavam no meu corpo as primeiras confusões.
E quando entrei no ônibus, na geral (ou seja, no fundão), uma turma de estudantes também voltava e cantava, desafinada e eloquentemente, Metamorfose Ambulante.
E, com aquela música, naquela música, através daquela música e seu canto, eles celebravam com tal intensidade aquele instante que não pude deixar de me entusiasmar também com aquela celebração.
Pois é, até os treze anos, eu não tinha noção ainda dele (confesso). Tempo de aprender cada um tem o seu (às vezes nem tem).  E, depois que passei a catraca, sentei num banco e ainda me animei a pegar Sabino da mochila, percebi que a cantoria não me deixava me concentrar no enredo daquele e notava também o quanto a letra ajustada àquela melodia era interessante, bela e dizia justamente algo com o qual eu me identificava, que me dizia de mim pela música.
Assim eu sozinha cismei naquela minha solidão.
E desde então nunca mais deixei de ouvir o tal Raulzito.
Morto há 23 anos, de algum modo, ele permanece. Pela obra que ainda faz girar algumas cifras e pelos “toque” que continua a soprar no ouvindo da gente, meninos e meninas perdidos nesse mundão de/sem deus, salve Raul!

terça-feira, 14 de agosto de 2012

POEMA PARA O DIA


Esperança
Mário Quintana


Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

RELES RESENHA - "Elogio da Mentira", de Patrícia Melo

Bom, preciso confessar - o continho ordinário anterior (Mais uma crônica de mais um amor louco), eu escrevi porque estava atordoada com a minha última leitura - Elogio da Mentira, de Patrícia Melo. Embora não interesse a ninguém, embora o caos na Síria continue da mesma maneira e o calçadão de Ponta Negra permaneça do jeito que está, essa é a motivaçào desta reles resenha - falar do livro da tal pagu.
Para além daquelas informações de orelha (ai, as orelhas de um livro...), o que fez o livro me ganhar mesmo, ele, adquirido ali numa maisoutra livraria de um mais outro shopping (Ed. Rocco, 20110), entre várias coisinhas (precinho razoável, lembrança de um velho amigo comentando em outros tempos, a condição de ser de uma mulher escritora, ótimo título), o que me ganhou foi ela ter dedicado ao Rubem Fonseca, ficcionista por quem ando enamorada ultimamente.
E ela fala de coisas absurdas e simultaneamente muito comuns a todos nós, reles mortais (pretensos escritores ou não): o amor entre um escritor plagiador de romances policiais de qualidade pra-lá-de-duvidosa (José Guber) e uma bióloga suspeitamente apaixonada por ofídios (Fúlvia Melissa).
Nas primeiras linhas, pela agilidade e leveza do ritmo, Patrícia me ganhou de vez. Ela, com crueldade e doçura, narra nosso existir. Como nesse trecho, diálogo dos amantes que planejam a morte do marido dela:


"Covarde, ela disse, covarde, vou matar sozinha, nào se preocupe, mato por nós dois, fique aqui escrevendo seus livrinhos, seus crimezinhos, covarde, eu vou matar sozinha. E plumb, bateu a porta, me deixando plantado na sala. Naquela época, eu já era louco por Fúlvia. Quando estávamos na cama, eu dizia, eu entro no seu corpo e tudo em mim, meu sangue, minhas células, meus átomos, meus elétrons, eles gritam, eu amo essa mulher. Das outras mulheres, eu nem me lembrava, Fúlvia veio como uma onda de mar bravo, desses que a gente vê na televisão, gigante, encobrindo tudo. Só que eu nào era capaz de matar ninguém. Uma coisa era escrever sobre crimes de mentira, e outra, completamente diferente, era matar um ser humano, apertar o gatilho, enfiar a faca, esganar ou lá o que fosse." (P. 31-32).

Eita!
Próxima leitura - O matador, da mesma Patrícia Melo. Pode cobrar.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

MAIS UM CONTINHO ORDINÁRIO - Mais uma crônica de mais um amor louco



MAIS UMA CRÔNICA DE MAIS UM AMOR LOUCO

Ele ali. Depois de esperar uma hora e dezessete minutos, olha ele ali. Daquele jeito mesmo que imaginou: simpático, discreto, casual.
Junto a outras três ou quatro pessoas que assistiram à conferência, entrou na sala VIP. Pessoas do staff entravam e saíam. Umas maçãs sobre a bandeja na mesa. Ele foi logo sorrindo:
- E aí pessoal...
Fotografias, sorrisinhos, satisfação. Ela permaneceu meio à parte, balançando a cabeça feito boi que concorda com o enredo que a conversa vai tomando. Sim, é, com certeza... Ele olhava para o grupo de uma maneira geral, como quem vê apenas o rebanho. Por dentro do casaco, ela sentia o frio da lâmina. E perguntava-se, como assim, pois é? É tudo o que você tem a me dizer depois de treze livros, cinco álbuns com trezentas e quinze fotos e reportagens, dias sem comer e noites sem dormir?
Na verdade, no íntimo, ela já sabia. Sempre soube. Esse daí é um feladaputa. Também. E já via toda a cena. Os dois juntos na cozinha, nus, tomando cerveja e dançando ao som de Manga Rosa, para depois ele ir seduzir colegiais com dois ou três versos razoáveis, enquanto a esposa o esperava em casa para o jantar. O problema é que o desgraçado não era só medíocre. Escrevia ótimos livros. E ela, jumenta, insistia que não via, insistia naquela condição – ser sua fã.
Foi assim: um dia, casualmente, depois do trabalho (ela, na época, já era caixa numa rede de farmácias), saiu para a noite que se iniciava sem maiores planos. Talvez um sorvete na esquina antes de ir para casa. Foi culpa da Ritinha, que não quis ir ao shopping com ela, estava gripada. Se tivessem ido circular feito baratas tontas, olhando as vitrines sem poder comprar porra nenhuma, não teria parado na banca de jornal da parada de ônibus, não folhearia revistas de previsão astral, não esbarraria no livro de bolso que anunciava – MAIS UMA CRÔNICA DE MAIS UM AMOR LOUCO, de Jorge Jota Jameson. Na capa, ela viu o seu próprio retrato – uma mulher de cabelos longos e loiros, sendo arrebatada num beijo de intensa paixão por um lindo e gentil cavalheiro...
Ali começou seu céu, seu purgatório, seu inferno. Não perdia um, mal saía o livro, já procurava no dia seguinte pelas bancas mais próximas. O rapaz da banca da esquina, o José, volta e meia soltava uma piadinha sem graça – esse cara deve ser bom, hein? Ela olhava furibunda de ódio para o moço, que cara o quê, animal, pensava e o outro baixava os olhos, constrangido com o olhar de fúria da fã. E meses depois, quando ela passava em frente à banca, ele costumava gritar, tentando ser simpático, coisas do tipo “Madame Maverick não mora mais aqui” chega na próxima semana, eu sei, ela resmungava entre dentes. Hunf.
Tablóide, revista de fofoca, blogs de internet, ela não perdia nenhuma novidade, nenhuma notícia, nada. Jota Jameson separou-se. Jota Jameson reatou com a esposa. Jota Jameson brincando com os cães de estimação na praia de Búzios. Jota Jameson fazendo a campanha de abertura do Criança Esperança. Ai, Jota Jameson!
Até que um dia leu, na revista: REVELADO TUDO SOBRE OS CASOS SECRETOS DE JORGE JOTA JAMESON. Ela ficou aturdida, não podia acreditar, não podia ser verdade que Jota Jameson levava fãs para a cama. Levava sim. Várias delas abriram a boca, aos prantos. Ele recita versos, ele nos deixa frágeis, ele nos leva para jantar num hotel caro, ele desaparece.
Seu mundo caiu. A essa bomba, seguiram-se outras revelações bombásticas, estampadas nas revistas de dois reais e cinquenta centavos: JOTA JAMESON ACUSADO DE PLÁGIO. JOTA JAMESON VAI AO TRIBUNAL PRESTAR CONTAS POR COPIAR ESTÓRIAS DE OUTROS AUTORES.
Não podia ser verdade. Ela tentava crer no que ele gritava nas capas seguintes: ESTÃO ME PERSEGUINDO! Mas alguma coisa desfalecia dentro de si. Todas aquelas lindas cenas imaginadas eram então mentira? Todas aquelas palavras que a embalaram nos ônibus lotados e nas filas de banco eram pura lorota?
Quis morrer, queimar pôster, livros e todos os arquivos que fizera ao longo dos últimos anos, quis morrer, quis matar. E sentia-se as próprias personagens dos livros do cretino, como Marialva da Cruz, de OS MISTÉRIOS DO AMOR, ou mesmo a Dra. Martine Follmaw, de SERÁ QUE ELE VOLTA?, banhada em lágrimas de desespero e desilusão. Ô vida cruel, meu Deus, essa de fã, essa de mulher...
E nada a tirava daquela tristeza, nem mesmo a campanha maciça da mídia por recuperar a imagem de bom moço de Jota Jameson: ele doando sangue, ele assinando um contrato em que cedia parte de seus direitos autorais para uma instituição que cuidava de papagaios com câncer, ele malhando na academia pelo dia mundial da saúde. Não, Jota Jameson, não dá mais. Não acredito mais em você, ela suspirava, cheia de ressentimento, pensando em como aquelas meninas das denúncias eram bonitinhas...
E foi então que chegou o dia em que Jota Jameson veio à cidade. Ele fazia uma turnê pelas principais capitais para o lançamento e divulgação de seu mais recente livro – SOBREVIVEREI, SIM! Mais de cinquenta mil cópias vendidas, só na primeira quinzena.
Ela leu a notícia na revista ASTRAL LEGAL sem esboçar nenhum gesto, nenhuma reação. Ele vem aqui, apenas pensou. E pensou nas meninas banhadas em lágrimas, ele jurou me amar, diziam, ele prometeu que era amor à primeira vista, gemiam, ai, Jota Jameson, isso não se faz.
Chegou o dia. Ela foi trabalhar normalmente. Atendeu os clientes da farmácia com a indiferença de sempre, mesmo que não tivesse dormido nada. Teve uma noite de cão, rolou na cama várias horas, sem conseguir dormir. E de manhã cedo, quando se levantou, foi direto para a cozinha e pegou a faca mais afiada que havia na gaveta.
Ali estavam, pois, os dois: autor e leitora. Ele com seu sorriso impecável e suas histórias de sempre. Ela afagava a lâmina, pensando em como fazer. Como fazer, meu Deus? Ela suava, o coração acelerado, o choro se anunciando...
Sem pensar, sem dizer nada, deu meia volta e saiu correndo, fugiu dali histericamente. Correu algumas quadras, feito louca, até que parou, sentou num banco de praça e pôs-se a derreter em um choro convulsivo.
- Ei, você...
Ouviu uma voz gentil dizer.
- O que foi que aconteceu? – alguém lhe afagava os cabelos, suavemente, sentando-se ao seu lado. Sentiu um cheiro delicado invadir suas narinas, com aquele toque.
Ele passava por ali coincidentemente. José, o cara da banca.