terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O ÚLTIMO CONTINHO ORDINÁRIO DE 2011

Enquanto O Livro de Contos de Alice N. não se materializa (lembramo-nos, neste momento, de Hemingway, para quem um livro sobre o qual falava era um livro não escrito), publicamos aqui mais um continho ordinário, o último de 2011. E para nossos poucos e descuidados leitores, um feliz ano de 2012. Para todos nós!


O RÁDIO

 

Nada na mente. Nem na geladeira. Quis fumar um cigarro qualquer da noite passada. Não achou. Conformou-se. Na cozinha, esbarrando em baratinhas, colocou uma panela com água no fogo e sentou-se, à espera. Chá de boldo ou macarrão com alho? Eram as opções. Mas, na dúvida, ela sabia perfeitamente: não faz diferença, tudo vai passar.
Pensamento solto, vagando no abstrato do nada de coisa nenhuma, foi por acaso que o percebeu. Estava sobre a prateleira da pia. Sujo, encardido pela poeira gordurosa do esquecimento, o pequeno rádio amarelo de pilha que um dia Elisa trouxe para ela.
Numa tarde amena, tranqüila, sem dores da existência. Porque elas se amavam. Elas se queriam e o mundo tinha assim sua lógica. Naquela tarde estava de folga, era no tempo em que dançava no programa do Canal 13. Comia uma maçã com as pernas esticadas para cima, para ajudar na circulação, quando Elisa chegou, loira e perfumada como era:
– Olha o que eu te trouxe...
– Um rádio?!
Amou sinceramente aquele presentinho besta, como amava Elisa e tudo o mais que vinha dela: palavras, gestos, beijos. Amava Elisa. Naquela época, ninguém entendia. Porque Elisa era mulher e mais velha alguns anos e isso era um tabu. Não importava. Ainda que não pudessem ostentar livremente o seu amor, elas se amavam e isso, para ela, era o que importava.
No fogão, a água fervia. Venceu o macarrão, afinal.
Moravam juntas há dois anos. Elisa trabalhava no interior, só chegava na sexta-feira à noite. E ela se apresentava aos domingos pela tarde, ensaiando durante a semana as músicas coreografadas que dançaria no programa, junto com mais cinco moças. O dia que tinham para si era o sábado. Ela fritava ovos, fazia café e acordava Elisa com mimos na orelha. Depois era Elisa que lhe fazia massagem nas pernas e pés. Ligavam o rádio e ficavam à toa, folheando uma revista, falando mal da vida alheia, rindo por bobagem, até a hora do almoço. Saíam para almoçar. Às vezes emendavam um cinema. E assim iam vivendo, inocentes, felizes.
O macarrão ficou uma pasta mole e sem sabor, o alho era pouco e a vontade menor ainda. Queria mesmo era um cigarro. Ainda assim comeu, resignada. No mesmo canto, o rádio a encarava.
Elisa telefona um dia, dizendo que não vinha no fim de semana. Ia ficar lá, numa reunião de planejamento do grupo e não sei o quê. Tudo bem. Elas se amavam. Acreditava nisso. Nem lhe passou pela cabeça que Elisa tinha um homem. Um homem. Ela não foi suficiente para Elisa. E só soube muito tempo depois, após muitas reuniões de planejamento. Soube casualmente, porque viu os dois num restaurante, quando saía do ensaio. Foi até lá. Fez cena. Gritos e choro. Em vão.
Quando Elisa foi pegar suas coisas no apartamento, ela se desesperou. Jogou o rádio contra ela, acertando a parede. Que era uma vaca mentirosa. Depois se ajoelhou, implorando sua volta. Que era a glória de sua vida. Agarrou-se às suas pernas, em prantos infantis. Elisa era a frieza em pessoa. Não recuou. Deixou-a lá, rádio e vida em cacos.
Depois não pôde mais dançar. Era impossível ensaiar passos, ficar os domingos com um sorriso idiota no rosto, requebrando-se para uma platéia cretina. Logo o Canal 13 a dispensou. Foi então beber, vagabundar em inferninhos e sentir o peso da existência.
E ali estavam, ela e o rádio, na mesma solidão. Não lembrava mais como ele foi parar ali na prateleira da cozinha. Talvez nem prestasse mais, faltando pedaços e tanto tempo sem tocar. Ficou quieta, pensando, pensando... Não faz diferença, tudo vai passar. Decidiu-se, então: pegou o pequeno rádio amarelo e girou o botão.
Clic.
O mesmo chiado. Um arrepio correu pelo corpo inteiro. Elisa estava ali, rindo, com seus cabelos loiros, pedindo mimos na orelha. Tentou sintonizar alguma freqüência. Aos poucos, distinguiu uma canção, distante, ligeira. Como tudo mais.
No canto, as baratinhas espiavam.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

OS CHATOS E AS CHATAS DE 2011

Lembrando que a chatice também pode ser considerada uma arte, eis os vencedores da chatice de 2011 da cidade do Natal. Atendendo a pedidos e, certamente, contemplando opiniões diversas...

O chato ciente de sua chatice: Jóis Alberto
O chato das rimas forçadas: Zé Ferreira
O chato presidente: Lula Augusto
O chato ninguém me ama ninguém me quer: Volonté
A chata performática: Civone
O chato das camisas engraçadas: Raul Varela
O chato chorão: Assis Marinho
O chato albino: Alexandre Gurgel
A chata comentarista: Alice N.
O chato dono da rua: Camilo Lemos
O chato lambe-lambe da cultura popular: Lenilton Lima
O chato divorciado: Fábio Eduardo
A chata botequeira: Nazaré
O chato que pinta os cabelos: Paula Neto
O chato locutor de partidas de sinuca: Fernandinho
O chato giz de cera: Marcelo Fernandes
O chato imortal: Diógenes da Cunha Lima
A chata prefeita evangélica: Micarla
O chato jovem intelectual: Alex de Souza
O chato velho intelectual: João da Mata
Os chatos listadores de chatos: Rafael Duarte e Cellina Muniz

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

RIMAS CHINFRAS N. 2

Concha nenhuma me conta segredo,
Búzio nenhum me diz do mar.
A estrada?
Exílio, degredo.
Destino pra não se chegar.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

RIMAS CHINFRAS

Minha saudade, impossível.
Como sol: cega.
E na pele, o suor
Escorre o indizível.

Um verso pra não dizer
O mundo em que vou me espalhar.
Mergulho, eu também, no mar
E afundo até não mais ser.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

HAIKAI PARA DEZEMBRO N. 3

Sou toda ventre
Prenhe
Para nascer de mim.

CRONIQUETA METIDA A BESTA

LEMBRANÇA DE UM PASSEIO
Levou a filha de cinco anos consigo. Lá, sol, mar e aquela explosão que é uma praia urbana num dia de domingo.
- Seu clitóris é imenso – ele diria logo depois para a dona do bar, os dois atracados no minúsculo e fétido banheiro como são muitos deles nas praias e nos dias de domingo de sol. Enquanto isso, a menina chupava o dindim de morango, sozinha em meio aos bêbados, à espera do pai que saíra para mijar, três caipirinhas e duas cantadas ordinárias depois.
Chegaram, escolheram uma das mesas e sentaram. Uma mulher com grandes peitos moles veio atendê-los. O pai olhou de esguelha para a menina, tentando adivinhar se ela desconfiava de algo.
(É, filha, a estranheza sempre espreita, mais cedo ou mais tarde...)
- Ó tua caipirinha, tá uma diliça – anunciou a mulher, com voz a se pretender sensual.
Passou o ambulante, a menina só olhou para o pai e ele adivinhou, chamando o homem.
- Tem de quê?
Ela preferia o de uva, acabou escolhendo o de morango. Achava o vermelho mais bonito, parecia mais saboroso, mas um dia ela perceberia que todas as cores têm seu valor.
E por que é que todas as histórias têm que ter um elemento de sacanagem? pergunta a menina anos depois, olhando um pai sentado na calçada da esquina com um bebê no colo, enquanto aguarda o ônibus que a leve para uma das praias da cidade que ferve em mais um domingo de sol.

domingo, 4 de dezembro de 2011

UM POEMA DE JOTA MOMBAÇA

INEXÁGONO

Nada me reside
Há em mim falta de tudo
Mas sou habitado pelo trânsito.

Geometria incalculável me desenho:
Inexágono,
Estilhaço sanguinolento caindo como chuva.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

PERSONAS POTIGUARES: FIA


FIA

Era estrangulado o sorriso dela. Chegava-se e esgarçava a boca naquele jeito fia de ser, em busca de um trocado ou de atenção. Em uns, repúdio, em outros, graça. Outros também: indiferença.
Pulseiras de cigana. Cicatrizes pelo corpo.
- Fia, no que tu te fias?
Perguntavam os poetas do Beco, em noites alucinadas.
E enquanto seguiam, versos trôpegos noite adentro, o olhar perdido de Fia acompanhava a sombra dos gatos em noites perdidas da tal futurista cidade.

HAIKAI DOIS PARA DEZEMBRO

Dezembro, sim
Eu lembro:
tempo de esquecer.

UM HAIKAI PARA DEZEMBRO

Finda o ano
Outra vez
(Des)engano.