O LIVRO
Alice N. cumpria o ritual religiosamente: depois das obrigações, lá pelas quatro da tarde, escapava com passo ligeiro rumo à biblioteca de Caicó. Lá, entretida entre papéis, poeira e solidão, ficava até seis e quarenta e três. Na noite que se iniciava, voltava para a casa da patroa como quem vai flanando, sem ver nada de gentes e gestos, ultrapassando, veloz, bicicletas, bares e bichos. Era Alice N., na volta da biblioteca, ser de outro tempo que não aquele agora.
Alice N. era mais uma entre tantos. Dezesseis anos, dentes quebrados, alma desgarrada de família e de futuro, cedo se viu na incumbência de ter que sobreviver – lavar roupa, cozinhar, cuidar de menino dos outros... Até os quatorze anos viveu com uma avó que lhe ensinou a ler, mas quando a senhora morreu – uma queda no terreiro entre as galinhas perplexas – Alice passou para a página mais amarga de sua vida – fome, maltrato, desesperança.
Como tudo na vida, o tempo seguiu lentamente e foi tudo se conformando. Tudo ia seguindo lenta e conformemente, tal como a folhagem das árvores sob o ar parado dos domingos de verão do Seridó.
Até que, entre as lidas do dia a dia, descuidada e sem maiores expectativas, num sábado de feira, Alice N. teve uma surpresa, mais uma virada de página no livro de sua vida. Outro capítulo que se iniciava sem que sua leitura vadia e inocente pudesse controlar.
Era um velho calvo e de barbas longas e brancas. Seu ar não tinha nada de solene: com uma voz pausada e tonitroante, de modo loquaz e atrevido, recitava os versos de um cordel seu. Que céu, para Alice N.! Sair de si! Eram tantas as histórias numa única história! Era tanta promessa em versos medidos, tantos mistérios em palavras rimadas!
Ao final do recital, quando as pessoas ao redor se dispersaram, Alice N., ainda emocionada, foi se chegando lentamente do contador de histórias. Ele juntava os folhetos, guardava os troços numa maleta velha, de outros séculos.
Ai, Alice... Foi ali que a paixão tomou conta de seu ser. Olhando aquele outro estranho ser, portal para outra existência, Alice N. vislumbrou a ponte da palavra escrita e desejou, ardentemente, jogar-se naquele abismo do que não se conta e não se diz. A alguns passos, observou o velho por alguns instantes e, criando coragem, aproximou-se.
Ia dizer, mas a linguagem lhe faltou. Apenas observou, sem que o homem demonstrasse nenhuma atenção a ela. Ele juntou suas coisas, colocou um chapéu na cabeça e seguiu, rua abaixo. Sem ter o que fazer, irremediavelmente presa a ele pelas manhas de um narrador distante e inconsequente, seguiu o velho, esperando pela oportunidade propícia – que, ela não sabia, nunca vem.
O homem, com sua barba branca e suas histórias latentes, seguiu até o prédio nomeado com alguma pompa – Biblioteca de Caicó. Um pequeno prédio, de esquina, sob a sombra gentil de uma quixabeira. Alice N. parou em frente à porta da entrada, hesitante. Mas o desejo de falar com o homem era tão grande que, respirando fundo, encheu-se de coragem e entrou.
Viu quando ele cumprimentou uma mulher atrás de um balcão, cheio de salamaleques. Viu quando ele pegou um jornal e sentou-se à mesa do grande salão. Viu quando ele se levantou e foi passear entre as estantes. Uma, duas, três voltas por entre os livros. Havia livros de todas as formas: livros pequenos, livros grandes, livros grossos, livros finos, livros novos, livros antigos... E o velho, como num passeio, óculos na ponta do nariz impertinente, verificava, verificava, verificava...
E Alice N. só admirava... Que encanto a lhe atrair? Que segredo a ser revelado?
Quando pensava ser possível chegar-se, finalmente, junto a ele, viu que o poeta escolhia um livro qualquer de uma prateleira qualquer, com muito espanto e alegria. Achou, assim, que seria inconveniente falar-lhe. Esperou para ver se ele colocava o livro novamente na estante, mas, ao contrário, viu que ele levava o livro novamente para a mesa. Então se sentou e pôs-se a folheá-lo com vivo interesse e peculiar curiosidade.
Ah, mistério! Ah, insondável! Que frase te cativa? Que palavra te contém?
Alice N. viu, então, o velho de longas barbas brancas levantar-se, deixar o livro sobre a mesa e retirar-se muito rapidamente da Biblioteca de Caicó. Foi-se em boa hora. Alice N. não teve tempo de esboçar nenhuma reação, tão entretida estava vendo o homem ler. Partiu, simplesmente, e Alice não pode lhe falar.
Entre espanto e esperança, foi timidamente até a mesa. O livro jazia ali, único sobre a mesa, esquecido em sua leitura errante para nunca mais. Alice olhou ao redor, timidamente, até tocar no livro, puxá-lo para junto de si e observar sua capa. Apenas algumas letras, em vermelho, diziam:
O livro de contos de Alice N.
Um livro inteiro de páginas em branco. Um livro que estava para ser escrito.
Roubo tempo escasso aos patrões (que se dizem trabalhadores) para comentar.Criador e criatura. Escrever sobre isso comeria léguas de bits e horas que agora não tenho.Alice scriptora, personagem que se re/inventa a começar por um passado de gata borralheira sertaneja e ansiosa por letras. Não satisfeita ainda, a criatura busca reinventar o criador/criadora. Algo entre um velho de barbas brancas (terrível, mas uso cavanhaque preto) e um livro com páginas em branco. Seria a avó uma professora, já que a ensinou a ler? Por suposto.
ResponderExcluirConstruir-se enquanto escreve. Barthes.
O Livro de Contos de Alice N será a letra escalarte? Quanto de Alice N é Hester Prynne? Será que descende das bruxas de Salem, de onde veio Hawthorne?
Jogo perigoso que lembra as casas, ou mais precisamente as escadarias, de Lovercraft e a lógica de mister Dogson.
Doravante, ao invés de perguntar quem matou Joana D'arc, passarei a indagar sobre quem pariu Alice N. Ou melhor: como ela está se autogestando.
Ainda volto para tratar do Seridó, dos cordéis dentro de uma mala, do mito da biblioteca e de como se volta para casa após visitá-la, da avó professora intinerante, dos horários de ir e voltar e da celenita. Gostei. Por fim, crede-me:De nihilo nihil e Ars est celare artem...