NO CORAÇÃO DA CIDADE
O BECO
Dos estetas
Dos filósofos
Dos poetas
O nosso
Beco
O Beco da Vida
O Beco da
Lama
(Amir Massud
– 1988)
Ruína, ratos, lama, beco da. Desde tempos imemoriais, o Beco
abriga uma fauna de boêmios de procedência variada, jornalistas, camelôs,
músicos, advogados, ladrões, médicos, drogados, engraxates, marchands,
protéticos, relojoeiros, atravessadores, toda sorte de biriteiros trafegam por
essa artéria.
Na década de 60, o Bar de Nazi era frequentado por uma
geração de artistas e intelectuais de diferentes correntes literárias. Newton
Navarro e Bosco Lopes. Alexis Gurgel e Berilo Wanderley. Dailor Varela e
Sanderson Negreiros. Luís Carlos Guimarães e João Gualberto. Jarbas Martins e
Emanoel Bezerra. Estes eram alguns dos que frequentavam com maior ou menor
assiduidade o Bar de Nazi. Sujeito temperamental e exclusivista. Quando ele não
simpatizava com a cara do indivíduo ou quando o cara já chegava “triscado”, ele
balançava o indicador num gesto de negatividade, dizendo – Aqui não! Aqui não! Nem
adiantava o sujeito protestar, que ele não despachava mesmo e vociferava com
uma autoridade que lhe era particular – Pegue o Beco! E repetia a frase como se
nem mesmo ele estivesse acreditando no que dizia – Pegue o Beco!
Vi muita gente ser expulsa de lá com esse palavreado,
inclusive eu. O Bar de Nazi era um pequeno cubículo, sem grande atrativo
ambiental, do lado de fora o cliente, boca seca, querendo tomar uma, do lado de
dentro ele, autoritário e pouco receptivo, separados apenas pelo balcão, tipo “morre
em pé”. Nas prateleiras, uma grande quantidade de garrafas de cachaça de várias
marcas amontoadas desordenadamente, algumas canecas em forma de falo (presente
de alguns frequentadores), muita teia de aranha ornamentando a coleção de
garrafas, o que tornava o ambiente meio gótico.
A especialidade do bar era (e ainda é) a cachaça, porém, o
grande atrativo era a famosa Meladinha de
Nazi, composta de cachaça, mel de abelha e limão e misturava os
ingredientes, ele pegava um pauzinho em forma de gancho, medindo cerca de 15
cm, friccionava com as palmas das mãos por alguns segundos e estava feita a
meladinha. Nazi era mestre nessa alquimia, daí a grande popularidade de seu
bar.
Um ambiente tipicamente masculino, onde as conversações
variavam de acordo com o calendário dos acontecimentos, política, futebol,
religião, cinema, sexo, música, teatro, poesia, poema/processo, guerra e paz.
Passados os anos traumatizantes do regime militar, transpondo
os umbrais do século XX, chegando aos dias atuais, o Beco continua imutável em
seu aspecto etílico, porém, no que se refere à sua arquitetura, o centro da
cidade aos poucos vai entrando num processo de degeneração gradativa, perdendo
algumas peculiaridades características de uma artéria tranquila e prazerosa do
século anterior, evidenciando uma falta de planejamento urbanístico. Casas e
edifícios com suas esquálidas ruínas, adicionados a terrenos baldios,
demonstrando um total abandono por parte dos gestores públicos, além da falta
de policiamento ostensivo, especialmente no horário noturno, o que fomenta uma
série de infrações, furtos, assaltos, exploração sexual, depredação do
patrimônio público, confirmando um descaso evidente com que as autoridades constituídas
relegam aos que moram e frequentam esta área. Preferem ficar indiferentes a
esses delitos, cuja raiz está inserida no contexto social e na ingerência
administrativa. Há ainda um forte agravante: ao lado de tais atrocidades,
funcionando harmoniosamente, estão as sedes dos poderes constituídos: o Fórum
do Poder Judiciário, a Assembleia Legislativa e a sede do Poder
Municipal. Esta área vai aos poucos se metamorfoseando em um amontoado de lixo
e entulho, sem grande representatividade histórica e sem identidade cultural.
Esta área corre o risco de se tornar um bairro fantasma em futuras décadas.
Cabe às autoridades competentes, moradores, associações afins e outros
segmentos da sociedade reverter esse quadro tão deprimente de nossa cidade com
a maior urgência.
Alguns remanescentes daquele tempo continuam frequentando o
Beco esporadicamente: o hilariante Dr. Chiquinho sempre brincalhão, porém,
quando o assunto requer seriedade, mostra sua outra face e torna-se brigão e
polêmico; o não menos brincalhão França, com sua verve machista do tipo “jacaré
no seco anda?” ou ainda “pegue na minha e balance!”; o poeta João Gualberto,
com sua voz de barítono a cantarolar “praierááá dos meus amoreees”; o severo
Dr. Manoel de Brito, que religiosamente às 10, 11 horas toma sua dose e pega o
beco; o poeta (com seu bigode de Bievenido Granda) Amir Massud... E outros da
nova safra de boêmios que estão sempre pelas redondezas: o galã e conquistador
inveterado Marcelus Bob; o criativo e lírico Assis Marinho; o maceteiro e escorregadio
Marcelo (pesão) Fernandes; o peripatético (como quer Nei Leandro) Manoel
Fernandes, sempre resmungão (“colega, eu...”); o inflamável e anárquico Plínio
Sanderson; o tropicalista e caetaneiro João Batista de Moraes Neto; Help (Honey
Baby) acompanhada do fotógrafo argentino Marcelo; o poeta puto (e amigo de
Jards Macalé) João Barra; o sempre bem humorado Dr. João (Zizinho) Batista; o
poeta do grande “Falo” Paulo Augusto; os aluá(dos) Dorian (queixinho da
Mesopotâmia) Lima, Aluizio (Direitos Humanos) Mathias, Venâncio (não bebe álcool
mas está sempre com um copo de café na mão) Pinheiro; a dupla de assuenses
(in)separáveis Carlança e Carlos Bem (mal); Raul (Alcatéia) Cruz; o homem do
abacaxi; Nagério; Moisés (da gaita) Lima; Ricardo (selvagem da motocicleta)
Brito; Bianor (o poeta cafuzo) Paulino; Lula (o cineasta sem filmes) Lula; o
ex-hippie Maurilio (Marlon Brando)Eugênio; o sinfônico Barbosa; Eduardo
(ex-Samba) Alexandre; o sambista Birra; a eterna carioca Mathilde (Biba)
Thompson; o guia e expoente da cultura Alberon Soares; o melindroso e
multifacetado J. Medeiros; o parasebista Vicente (último grande leitor de
Borges) Januário;; o espertalhão e flagelo dos deuses Átila, o relojoeiro; a
dupla dinâmica; os fotógrafos Alexandre Gurgel e Hugo Macedo; a criativa e
performática Civone (aqueles peitos!) Enovic; o rei dos cornos Fábio (toda
merda agora é arte) Ojuara; o loroteiro contador de estória Abimael Silva; o
talentoso Fábio (ex-pugilista) Eduardo; o papa prêmio Franklin (excluído)
Serrão; Júlio César etc. etc. etc.
Reduto de artistas, poetas, malandros, receptadores, putas e
gigolôs, entre tapas e beijos, amor e ódio, tristeza e alegria, egoísmo e
solidariedade, tradição e modernidade, comédias e tragédias, o Beco continua
sua saga, essa bipolaridade própria da complexidade humana, onde habitar o
homem, haverá essa (des)graça, o Beco é isso e muito mais. O Beco é o coração
da cidade...
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