A LEITURA DE LIA
Pergunte se ela lembrava, depois. Claro que não
se lembrava de nada. Aliás, quem é que lembra exatamente o enredo de cerca de dois
mil livros, lidos em alguns tantos anos, com todas as suas temáticas, tramas
conceituais, personas e paisagens, focos narrativos e o escambau? Sem falar
que, muitos dos momentos de leitura eram regados a vinho e desmesura... Alguns,
não todos...
Mas muitos.
Muitos mentem, é verdade. Mas Lia era muito
sincera quando lia. Ainda que, depois, não lembrasse mais de muita coisa. Um
verso ou outro. Uma qualquer expressão. Porque a leitura é como tudo na vida,
conformava-se Lia – passa. E ela lia
mais um livro quando Ulisses chegou.
De novo Ulisses? De novo, Ulisses?
Foi o que Lia pensou, ajeitando os óculos sobre
o nariz, quando ele disse o nome.
- Que livro é esse? quis saber, cheio de marra.
E qual era mesmo o livro? Lia lia um livro
quando Ulisses chegou. A Odisséia? Perto do coração selvagem? Ou o de Joyce
mesmo?
Nenhum desses. E também não importa. O que
importa dizer é que, através das letras do pequeno monstro tipográfico que
segurava nas mãos, justamente daquele que segurava nas mãos quando Ulisses
chegou e fez-se a luz, Lia caía no Labirinto e lia o Livro da Outra Dimensão.
Esse mesmo. O da queda no abismo. O do instante para sempre e nunca mais. O
livro do que não se diz mas se sonha. O livro de Si.
No deslize da leitura, Lia caiu nessa outra
leitura, a de sua nudez, a de sua verdade, a de Lia. Na leitura de Lia, ela
viu, num vislumbre, todas as (im)possibilidades mas deteve-se em apenas uma, a
mais (im)provável: a de Lia, a sujinha.
Ei-la:
Portando um livro qualquer nas mãos, muito
digna, Lia saía em certos dias pronta para errar. Assim, como quem não quer
nada. Não quero nada do mundo! Parecia proclamar, com seu ar de dignidade,
segurando distraidamente o livro nas mãos.
Mas qual livro? O leitor incauto ainda
pergunta. Companhia das Letras? Coleção João Nicodemos? Não interessa. O que
interessa é que Lia, com sua bundinha empinada e beicinho arqueado, saía à cata
de um erro e à sombra da lua, querendo só uma coisa, a única coisa certeira de
certos dias de seu viver.
Lia queria fuder.
Enquanto Lia se afundava na sua leitura,
esperando o tronco do Ipê amarelar o cinza do sertão, esperando o búzio bojudo,
rosado e redondo, vir com a onda lhe dizer segredo de azul-verde mar, Ulisses
chegou. Chegou e perguntou a ela, na sorveteria em frente à parada de ônibus da
rua da Aurora:
- O 48 passa aqui?
Lia ajeitou os óculos na ponta do nariz e
pensou, passa onde você quiser, meu filho, aproveita e passa também aqui a sua
língua...
No meu coração.
Na leitura de Lia, então, que regava em
segundos a rugosidade mansa e melosa de milênios, Ulisses – primeiramente lambendo
com quase solenidade, depois chupando com total sofreguidão – desfazia-se nos
bicos dos mamilos, nas pontas das orelhas, nos dedos dos pés, no botão de
pétala que guardava os segredos mais secretos dela.
Lia!!!
Mas e então, narrador? Aconteceu? Bebeu dessa fonte Ulisses?
Findou esse livro Lia?
Pergunte se ela lembrava, depois...
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