domingo, 15 de maio de 2011

UM FERIADO

Quando a viu, viu primeiro sua boca. Boca de lábios finos, quase nervosos. Fumando o cigarro se tornavam mais ríspidos. Lábios de Rita, a ríspida.
O quarto era um cafofo. Uma maloca velha, desejada de ninguém. Tinha a percepção completa daquela realidade. Olhava cada canto, cada viga, cada mancha, ofegante ainda da caçada, e constatava – bom demais para durar. Era como uma trégua, bananas e maçãs maduras em plena trincheira de guerra. Era como uma ilha, manancial de água doce e sombra de coqueirais em meio à vastidão salgada e imperdoável do oceano. Rita, naquele quarto minúsculo, escuro e fétido, era um lenço branco no amontoado de roupa suja e mofada. Um lenço com bordas de renda, cheirinho doce de alecrim e lembranças perdidas de infância feliz.
Rita: um cigarro nos lábios finos e vermelhos, olhar perdido de mulher perdida. Tá olhando o quê, otário? Rita, a ríspida. Ficou calado, sem ter o que dizer. Minutos depois, desistiu do café e pediu uma dose, no botequim. Sabe de uma coisa, pensou, hoje vai ser feriado. Mais animado, perguntou, quase doce, aceita uma dose? Óbvio! ela exclamou, rispidamente. Assim era Rita. Rita de Cássia. É, nome cafona, eu sei, ela disse, quando se apresentou. Mas no nome não cabe a pessoa, ele disse. E ela gostou. Mais outra dose, então.
Depois foram ver o mar, encharcados de cachaça e de vontade. Era uma louca, a Rita. E os lábios eram uma delícia, como seus cabelos cacheados e seu olhar de fúria. Como já adivinhava, ao vê-la entrar no boteco, fatigada de mais uma noite de lida. O que você faz? perguntou, só para testá-la, sem coragem de olhar nos olhos dela. Eu sou puta, declarou, devorando o último naco de carne do espetinho de um outro botequim. Caía a noite. A melhor hora do dia. Hora de fazer planos, de se permitir sonhar. Vixe! ele não conseguiu segurar. Ela o encarou, com firmeza. E você faz o que, maioral? Eu? Sou operador de xerox, mentiu. Ah, é? Trabalho numa biblioteca, oito horas cercado de livros e revistas, no mezanino. Ah, é? E que porra é mezanino? Mezanino? É, que porra é essa? É o piso em que trabalho. Fica no vão de uma escada. Ah, é? Então me diz uma coisa, quando alguém sobe a escada, e você sente que tem alguém por cima de você, você goza? Ele riu, quase engasgando com a cebola da farofa. Pois é, eu pelo menos consigo, de vez em quando, explicou Rita, a ríspida.
A melhor de todas, ele já sabia, olhando para ela enquanto seguiam no ônibus. Mil vezes melhor que Lívia, a lívida. Ou Malena, a maligna. Amaria Rita por mil anos, concluiu. Mas era bom demais para durar, soube, com o rosto mergulhado no sexo salgado de mar, um portal de luz naquele quarto sombrio onde ela morava. O melhor lugar do mundo.
As primeiras réstias de luz se adiantavam, tímidas, quando Rita dormiu. Dormia candidamente, e não tinha nada de ríspida, com seus traços suaves, suas linhas perfeitas. Nada ríspida, depois de uma caçada tão furiosa. Um sossego aquilo ali. Uma paz que mezanino de biblioteca nenhum daria. Amaria Rita por mil anos.
Catou as peças de roupa espalhadas pelo chão. Um gato surgiu do escuro, observando sua fuga. E fugiu, girando a chave com cuidado, abrindo a porta, escapando madrugada afora, porque aquilo ali era bom demais para durar.

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