quarta-feira, 28 de novembro de 2012

MAIS UM CONTINHO ORDINÁRIO


EM MEIO À BRUMA E SOLIDÃO

-   Dona Fransquinha, é aqui, ó, aqui que senta...
Mas Fransquinha queria sentar para cagar era no jarro da pequena palmeira que havia no banheiro, ao contrário do vaso sanitário muito branco e limpo que a cuidadora Armanda mostrava para ela. Certamente, no sábio esquecimento da doença, concluía que pouca diferença faria – era tudo sempre a mesma merda.
- Aqui, dona Fransquinha, vem...
Desistiu de teimar e foi pro trono. O clássico. Em alguns anos mais, dona Fransquinha não controlaria os movimentos do esfíncter e usaria fralda descartável. Bem diferente de seus primeiros cueiros, de oitenta anos atrás.
Fransquinha, um dia, foi menina e foi mulher. Menina, já teimosa e cheia de manha. Mulher, cheia de tara e ardil. Onde vagavam as lembranças de dona Fransquinha naquele momento em que defecava sem se notar?
E quando começou o fim?
Não sabia, não lembrava. Da noite para o dia perdeu toda compostura. Dizia o que queria. A cada mês mudavam de cuidador ou enfermeiro, exaustos com os desaforos de dona Fransquinha:
- Olha, amanhã eu venho almoçar com a senhora de novo, viu?
- E por que você não vai encher esse rabo em outro lugar?
Era tudo bruma na mente de dona Fransquinha. Mas numa daquelas noites, depois de um ataque furioso de gritos e pratos no chão, quando todos na casa dormiam, exaustos, e só a solidão espreitava, acordou com a lembrança que veio súbita em forma de sonho.
...
Ela me arrastava pela mão, como quem leva cruz. Mas, na verdade, ela é que era minha cruz. Me arrastando, de bar em bar, esmolando um trocado, se fingindo desempregada. Era tanta a minha infelicidade que minha cara de dor convencia e muitas vezes recebíamos uma esmola gorda.
Era nos fins de semana. No sábado e no domingo, logo cedo, a velha vinha com sua voz esganiçada, infalivelmente:
- Ainda não tá pronta, Fransquinha? Anda logo, troço!
Embora com doze anos, eu tinha que vestir uns vestidos que me infantilizassem, havia dois ou três para aquela ocasião, muito puídos, que era para despertar ainda mais nossa triste condição de pedinte.
O fato é que a desgraçada possuía duas casas, cujo aluguel dava perfeitamente para nos sustentar. Como era mesmo o nome da bruxa? Por onde ela estaria agora?
Nos quinto dos infernos, é claro!
...
E aquela certeza lhe pareceu incrivelmente engraçada. Nos quintos dos infernos, claro!
E pôs-se a gargalhar com gosto, vingada daqueles anos de miséria que o tempo apagou da memória.
- É nos quintos dos infernos, nos quintos dos infernos, claro!
Gargalhava tão alto, dona Fransquinha, que as luzes na casa se acenderam. E riu tanto que se cagou na roupa.

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