SOB OS CAJUEIROS
Do escritório empoeirado, nos fundos da casa, podia ouvir os gritinhos e risos das meninas brincando no quarto. Tirou os óculos e observou por um instante o quintal lá fora, pela janela escancarada para o sol da manhã. A vida podia ser tão fácil, sim... Tudo simples e espontâneo como o sorriso de uma criança. Tudo forte e sincero como o sol de uma manhã de dezembro.
O perfume dos cajus entrou com um vento ligeiro e adocicado, abalando as narinas e os papeis sobre a mesa. Olhou a desordem dos livros e cadernos e quis morrer. Lá fora, as árvores agitavam-se com suas folhagens muito levemente, como se conversassem entre si:- Você viu que nasceram mais três pardais?
- Você percebeu o orvalho dessa noite, como veio mais pesado?- Você notou que ele nunca mais deitou-se na rede?
De fato, a rede, armada entre os cajueiros, jazia inerte, abandonada, vez ou outra agitada por um vento mais forte. Quantas tardes de sossego, quantas leituras delirantes, quantas quimeras sussurrada em imagens confusas e perdidas para sempre?
Um dos rostinhos surgiu à porta – a declaração de fome.- Já já é hora do almoço, tenha paciência.
- Mas eu quero torrada com goiabada – foi a sentença.Foram à cozinha. Uma frase enquanto passava a geléia com a fria faca: a chuva do caju não lava minha alma.
- Mais uma torrada, pai.- Não lava, não lava...
De novo no escritório, tentou folhear o livro de Trevisan, sem ânimo. Pensou em ler os e-mails mas também não se empolgou. Às onze chegou a velha tia, trazendo as marmitas. De volta à cozinha, enquanto as meninas faziam festa em volta dos pratos, ela tentava dizer algo útil:- Você precisa sair mais, meu filho.
- ...- E seus amigos, onde estão?
- ...- Você precisa é arranjar outra mulher, esquecer de uma vez o passado...
O passado. A chuva do caju não leva meu passado. A chuva do caju não lava minha alma.
E comiam o feijão, enquanto lá fora a rede sob os cajueiros sonhava com beijos de outrora.
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