terça-feira, 15 de novembro de 2011

O HUMOR NA IMPRENSA NATALENSE: O JORNAL "O PARAFUSO"(1916-1917)

Outro dia, fui ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte em busca de uma revista em que supostamente o poeta Jorge Fernandes teria escrito alguns textos de humor. Não achei a dita cuja (Revista Araruna), porém encontrei, meio por acaso, mas graças ao guia de Manoel Rodrigues Melo e à solicitude de Lúcia, uma preciosidade: o jornal O Parafuso, um periódico humorístico semanal que circulou em Natal de 1916 a 1917.
Já na apresentação de si a verve satírica do jornal se anuncia: tendo como diretor “um jovem” e como colaboradores “quem tiver dinheiro e coragem”,  O Parafuso apresentava seções em que se destacava o riso de zombaria, na classificação de Vladimir Propp, isto é, o cômico alcançado a partir do rebaixamento do outro.
Fico imaginando o sucesso de público do jornalzinho. Mesmo sendo uma cidade ainda pacata, vivenciando as primeiras transformações geográficas e sociais que a transformariam numa Nova Natal[1], pode-se dizer que a capital potiguar já apresentava certa tradição de imprensa jornalística, com a edição e circulação de impressos como a revista mensal A Tribuna (1903-1904), dirigida por Pinto de Abreu, ou o jornal O Potyguar (1904-1908), de Gothardo Neto (cf. FERNANDES, 1998). Mas nenhum outro destacou-se como periódico de humor, editado semanalmente e alcançando o número de, pelo menos, 55 edições.
Certamente, O Parafuso era um dos principais hábitos de leitura e divertimento da monótona Natal de então: Dr. Seboso e Dr. Belzebuth se responsabilizavam por seções intituladas Dizem..., Damno-me... e De parafuso em punho..., colunas de fofocas e comentários maldosos a respeito de pessoas e episódios da vida local; Um cego aparecia como responsável pela seção Queria ver..., espécie de coluna de pequenos protestos e reivindicações; e outras alcunhas, como Zé Binga, Língua de Mel, Zé Mulambo, K Tizpero entre outros manifestam uma autoria afiada pelo humor. Vejamos alguns exemplos:
Na seção Dizem... encontramos pérolas como...
- que na rua Borborena appareceu um lobishome ás 3 horas da madrugada;
- que o dito já foi descoberto por um sapateiro que tirou-lhe o couro para fazer um par de sapatos para dar a um rapaz que tem um chamego no beco...  (16/04/1916).
- que na rua Amaro Barretto tem uma mulher que se não tomar um chá de talo de bananeira enlouquece (30/01/1916).
Outra seção, que também faz valer o rebaixamento do outro, é a Damno-me..., em que é possível observar a ridicularização de pessoas da cidade, como em...
- com Nezinho por querer ser poeta; vae estudar, jumento...
- com a falta de juíso que tem certa viúva da cidade-alta... (06/02/1916).
Esses poucos exemplos revelam o aspecto disciplinador que estaria associado a esse riso de zombaria. Já que essa manifestação de comicidade estaria apoiada na ridicularização de “defeitos”, fossem verdadeiros ou supostos (PROPP, 1992), O Parafuso, assim, parece pretender regular atitudes e comportamentos, censurando e combatendo tudo o que não estivesse de acordo com os códigos de civilidade da modernidade que então chegava à província[2].
A seção De parafuso em punho... é outra coluna d’O Parafuso que manifesta esse aspecto. Seguindo o título, surgem vários comentários sobre pessoas e/ou situações contra os quais o periódico se coloca. Dentre eles, destaque para trechos como...
- contra uma moça que foi a um enterro e trouxe um gerimú do cemitério (05/03/1916).
- contra a viúva da travessa P. Barros, que não tem verniz;
-contra a mesma que não respeita nem a irmã. Cuidado não seja tão alegre, sinhá cara de saguim (10/12/1916).

O mais curioso – e isso sim me fez rir a valer – é o comentário que aparece na seção Dizem...: “que em Natal há línguas ferinas demais”...
Imagino se os meninos d’O Parafuso visitassem o Beco da Lama nos dias de hoje...
Referências Bibliográficas
ARRAIS, Raimundo. Estudo introdutório. In: ARRAIS, Raimundo. Crônicas de origem: a cidade de Natal nas crônicas cascudianas dos anos 20. 2ª. Ed. Natal: EDUFRN, 2011.
AZEVEDO, Sânzio. A Padaria Espiritual. Fortaleza: Academia Cearense de Letras, 1976.
FERNANDES, Luís. A imprensa periódica no Rio Grande do Norte: de 1832 a 1908. 2ª. Ed. Natal: Fundação José Augusto/Sebo Vermelho, 1998.
PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. Vários tradutores. São Paulo: Ática, 1992.
SILVA, Marco Aurélio Ferreira. Uma Fortaleza de risos e molecagem. In: SOUZA, Simone de; NEVES, Frederico de Castro (orgs.) Comportamento. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002.


[1] Cf. Arrais (2011), no seu estudo introdutório sobre a cidade à época das primeiras crônicas de Câmara Cascudo. Segundo Arrais, algumas intervenções urbanas já no começo do século apontavam para a modernização da cidade, como a instalação de bondes em 1908 e a iluminação pública em 1911, mas a grande diferença se fez com o Plano Palumbo, na década de 1920, que reorganizou a malha urbana e criou jardins, praças e passeios na cidade.
[2] Também no Ceará é possível ver o mesmo riso disciplinador. Em seu estudo sobre a imprensa cearense do final do século XIX, Marco Aurélio Ferreira da Silva mostra como alguns pasquins, como O Moleque, procuravam, através do riso, “corrigir, regular e modelar hábitos e costumes” (cf. SILVA, 2002).

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