sexta-feira, 19 de outubro de 2012

MAIS UM CONTINHO ORDINÁRIO


A LEITURA DE LIA




Pergunte se ela lembrava, depois. Claro que não se lembrava de nada. Aliás, quem é que lembra exatamente o enredo de cerca de dois mil livros, lidos em alguns tantos anos, com todas as suas temáticas, tramas conceituais, personas e paisagens, focos narrativos e o escambau? Sem falar que, muitos dos momentos de leitura eram regados a vinho e desmesura... Alguns, não todos...
Mas muitos.
Muitos mentem, é verdade. Mas Lia era muito sincera quando lia. Ainda que, depois, não lembrasse mais de muita coisa. Um verso ou outro. Uma qualquer expressão.  Porque a leitura é como tudo na vida, conformava-se Lia  – passa. E ela lia mais um livro quando Ulisses chegou.
De novo Ulisses? De novo, Ulisses?
Foi o que Lia pensou, ajeitando os óculos sobre o nariz, quando ele disse o nome.
- Que livro é esse?  quis saber, cheio de marra.
E qual era mesmo o livro? Lia lia um livro quando Ulisses chegou. A Odisséia? Perto do coração selvagem? Ou o de Joyce mesmo?
Nenhum desses. E também não importa. O que importa dizer é que, através das letras do pequeno monstro tipográfico que segurava nas mãos, justamente daquele que segurava nas mãos quando Ulisses chegou e fez-se a luz, Lia caía no Labirinto e lia o Livro da Outra Dimensão. Esse mesmo. O da queda no abismo. O do instante para sempre e nunca mais. O livro do que não se diz mas se sonha. O livro de Si.
No deslize da leitura, Lia caiu nessa outra leitura, a de sua nudez, a de sua verdade, a de Lia. Na leitura de Lia, ela viu, num vislumbre, todas as (im)possibilidades mas deteve-se em apenas uma, a mais (im)provável: a de Lia, a sujinha.
Ei-la:
Portando um livro qualquer nas mãos, muito digna, Lia saía em certos dias pronta para errar. Assim, como quem não quer nada. Não quero nada do mundo! Parecia proclamar, com seu ar de dignidade, segurando distraidamente o livro nas mãos.
Mas qual livro? O leitor incauto ainda pergunta. Companhia das Letras? Coleção João Nicodemos? Não interessa. O que interessa é que Lia, com sua bundinha empinada e beicinho arqueado, saía à cata de um erro e à sombra da lua, querendo só uma coisa, a única coisa certeira de certos dias de seu viver.
Lia queria fuder.
Enquanto Lia se afundava na sua leitura, esperando o tronco do Ipê amarelar o cinza do sertão, esperando o búzio bojudo, rosado e redondo, vir com a onda lhe dizer segredo de azul-verde mar, Ulisses chegou. Chegou e perguntou a ela, na sorveteria em frente à parada de ônibus da rua da Aurora:
- O 48 passa aqui?
Lia ajeitou os óculos na ponta do nariz e pensou, passa onde você quiser, meu filho, aproveita e passa também aqui a sua língua...
No meu coração.
Na leitura de Lia, então, que regava em segundos a rugosidade mansa e melosa de milênios, Ulisses – primeiramente lambendo com quase solenidade, depois chupando com total sofreguidão – desfazia-se nos bicos dos mamilos, nas pontas das orelhas, nos dedos dos pés, no botão de pétala que guardava os segredos mais secretos dela.
Lia!!!
Mas e então, narrador? Aconteceu? Bebeu dessa fonte Ulisses? Findou esse livro Lia?
Pergunte se ela lembrava, depois...

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