domingo, 10 de junho de 2012

DOIS POETAS IMPOSSÍVEIS

A propósito da mesa-redonda (que, na verdade, acabou se configurando como um bom bate-papo) de abrtura do projeto "O livro e suas representações culturais", seguem trechos do artigo que preparei para abordar o tema " A iteratura potiguar na atualidaade", com minhas impressões sobre dois autores que, de algum modo, estão às margens do circuito profissional do livro - um que faz seus livros artesanalmente a partir de colagens e versões  e outro que publica esporadicamente na blogesfera - Falves Silva e Jota Mombaça. Infelizmente, as imagens não foram possíveis de serem reproduzidas aqui. Para quem se atrever, boa leitura!

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Por que poesia impossível? Eis a questão. E explico, ressaltando a incompletude de minha leitura, mesmo que toda leitura seja necessariamente incompleta: trata-se de dois poetas que manifestam intensamente o impossível da função literária que assinala Barthes, à sombra de Lacan (2000, p. 22): dizer o real.

Assim, percebo, pela obra desses dois, o impossível do poético em três aspectos que discutirei neste texto: os além-nomes, a confusão de linguagens e o desconcerto de temas. Impossíveis porque habitam o entre que vai do siso ao riso, do pronto ao inacabado. Porque se rebelam com a condição de que, novamente voltando a Roland Barthes, o fazer poético tem a missão impossível de fazer caber numa ordem unidimensional – a linguagem – aquilo que é pluridimensional – o real (BARTHES, 2000, p. 22).

Dos além-nomes

Se, conforme afirma Maffesoli, que rompe com a lógica da identidade e pensa o ser como identificações, a pessoa constrói-se na e pela comunicação (MAFFESOLI, 2005, p. 310), a criação artística é uma maneira então de reinventar-se constantemente. Diante disso, esses poetas impossíveis no seu fazer poético, não cabem num único nome porque um nome só não dá conta das possibilidades de existência lúdica e artística.

Assim, Francisco Alves da Silva é o Fransquim, é o Mister Boy, é o Falves Silva. Um poeta em processo, contínuo, incessante em significações que oferece àquele que se atreve na sua leitura. Para além do movimento literário POEMA-PROCESSO de 45 anos atrás, do qual foi um dos entusiastas praticantes e teóricos, Falves Silva está aí, com seus projetos, colagens e versões. Falves não está nas livrarias e nem integra as listas dos mais vendidos. Não tem contratos com grandes editoras e nem é lido nas escolas. Não recebe convite da Academia Norte-rio-grandense de Letras para falar de sua obra. No entanto, periférica e subterraneamente, ele continua produzindo sua poesia impossível. 

De maneira semelhante, Jota Mombaça. Aliás, a alcunha é nome de uma pequena cidade perdida no mapa cearense. Porque também só o nome José Gilberto não contempla as variadas facetas dessa presença poética. Por isso também assina como Lobo Errático, como quem diz, tal como seu perfil no Facebook: eu sou outro.

Evidentemente, o uso de pseudônimos não é novidade na história da literatura. Que o digam Linda Baptista e Nathália de Souza, respectivas personas de Carlão de Souza e Nei Leandro de Castro, para citar apenas dois exemplos potiguares. O que confirma o fazer poético como algo que está para além de identidades fechadas e inequívocas e sim como, novamente reportando a Maffesoli, “o uso de máscaras variáveis” (MAFFESOLI, 2005, p. 19).

Um, às portas dos 69. Outro, vinte aninhos. Um afetado por influências do cinema e dos quadrinhos, outro, atravessado por leituras filosóficas e acadêmicas. Como fazê-los encontrar-se num mesmo bojo?

Falves Silva, que entregava jornais quando menino e na maturidade produziu inúmeros catálogos e jornais alternativos, trabalha em gráfica e circula pelos sebos da cidade, sempre rodeado de livros e letras. É dos erros de impressão, aliás, que faz suas invenções, atualizando a máxima de que o diabo mora na tipografia.

Jota Mombaça é estudante da UFRN (está no segundo curso) e manifesta sua presença em momentos plurais, como por exemplo no BodeArte, nas Marchas da Maconha e das Vadias, na Flipout (vertente alternativa da FliPipa) e também no Substantivo Plural, interessante espaço cibernético de discussão promovido pelo jornalista Tácito Costa.

Assim como os além-nomes, outro traço do impossível da poesia desses dois me parece ser a confusão de linguagens.

Da confusão de linguagens

A poesia de Falves Silva extrapola as classificações convencionais e faz ranger os limites entre o verbal e o não-verbal. Desde a primeira exposição em Natal da turma do POEMA/PROCESSO, em 11 de dezembro de 1967, até as recentes produções artesanais de seus livros (todos, invariavelmente, feitos à mão e com a capa toda em branco), Falves Silva confunde. E incomoda. Conforme ele mesmo assinala, a respeito da repercussão daquela primeira exposição, alguns afirmavam/afirmam: “isso não é poesia”.

E o que é a poesia, gente ilustre? Se assumirmos uma perspectiva discursiva, tal como aponta Michel Foucault, por exemplo, notaremos que por trás dessas definições supostamente infalíveis sobre o que é ou não é poesia, há todo um cenário de rituais entre sujeitos autorizados que legitimam aquilo que funciona como literatura. A Universidade, aliás, faz parte desse jogo de seleção, sacralização e valorização (FOUCAULT, 2006, p. 59).

Mas Falves Silva parece não se importar muito com esse jogo. Cata páginas com erros de impressão, recorta figuras de revistas velhas e panfletos ordinários, junta tudo e ressignifica imagens, palavras, sentidos em poesia visual. O seu fazer poético jorra dali, de onde menos se espera, dos restos, do que ninguém parece enxergar.

Jota Mombaça também confunde a si e ao outro na pluralidade de linguagens. Faz poesia tanto por meio da escrita quanto por meio do corpo. Seus textos são uma mistura de gêneros discursivos, em que os artigos são poéticos e os poemas são ensaísticos. Como recursos para não se render ao impossível, Mombaça subverte a grafia padrão (como no poema çoneto), ou mistura imagens díspares, como em títulos tais quais Óperas silenciosas, tímpanos estilhaçados. A interrupção súbita das construções sintáticas também confunde, como no mesmo poema Óperas silenciosas, tímpanos estilhaçados:

becos, avenidas estreitas, esgotos, gramachos,
sucessão de polaroides – e a hiroshima onde meus pés.

Do desconcerto de temas

Não adianta negar: mesmo depois de nomes como Rabelais ou Sade, alguns textos insistem em nos desconcertar. O desconcerto destes dois poetas impossíveis está, sobretudo, no incomensurável que ensejam, aquilo que é demasiado humano, como diria Nietzsche, e que não tem peso nem medida.

O ser, que não cabe em si, tão finito e paradoxalmente ilimitado no seu poder de criação e destruição, nos seus abismos de sentimentos e sensações plurais e contraditórios. Esse é um dos matizes do impossível na poesia dos dois. Esse ser impossível de ser descrito e enjaulado numa única definição, tal como indica no seu poema inexágono:

Nada me reside
Há em mim falta de tudo
Mas sou habitado pelo trânsito.

Geometria incalculável me desenho:
Inexágono,
Estilhaço sanguinolento caindo como chuva.

A inexatidão humana só pode ser sugerida por aquilo que Barthes nomeia como anarquia languageira (BARTHES, 2000, p. 28). Como no texto Toque de Exu para Bartebly, em que só mesmo o encontro entre o ambíguo orixá e o personagem literário de Herman Melville para expressar isso que o escritor tcheco chamou de “insustentável leveza do ser”. Nesse texto, lê-se como epígrafe...

minha vida não vale nada, e já pesa. Os filhos perguntam:

“pai, você quer um mundo melhor?”

“fomos expulsos do mundo melhor.”

E calo.

Eles insistem: “então que fazer dessa humanidade?”

“à humanidade só nos resta desertá-la.”

Mas enquanto Jota Mombaça bebe no tom sisudo para falar do imensurável humano, por outro lado Falves Silva brinca com as solenidades, apela para o humor ao escancarar o que se esconde por baixo dos discursos oficiais cheios de “bom-tom”. Como disse Dailor Varela, “Falves está sempre partindo para OUTRA. OUTRAS EXPERIMENTAÇÕES.”


 Assim, entre o antepassado e o antecipado, o velho e o novo, o riso e o siso se encontram num espaço-tempo impossível. e chaga assim o instante de concluir o que não se conclui.

Chego, então, ao fim deste texto e me pergunto o que falta dizer. Mentalmente, vislumbro uma galeria de tipos com quem tenho aprendido alguma coisa: com Zila Mamede, sobre os mistérios do mar e da vida; com Palmyra Wanderley e Jorge Fernandes, sobre as simplicidades tocantes, as dos bairros natalenses ou as das quebradas do agreste e do sertão; com Newton Navarro, sobre a errância de paisagens e de personas; com Eulício de Farias Lacerda, as estratégias de um bom conto; com Volonté, as dobras do poder de síntese...

E com Falves Silva e Jota Mombaça, o que aprendo com estes dois poetas impossíveis?

Aprendo que é preciso insistir em desaprender também. Esquecer a comodidade da leitura fácil, linear e convencional. Aceitar o intolerável, admitir o desconfortável, perceber a complexidade. Permitir-se ao estranhamento que esses dois, nos seus além-nomes, nas suas confusões de linguagens e no seus desconcertantes temas, têm a nos dizer sobre o indizível: o humano, o mundo, a vida e tudo o mais.

Referências Bibliográficas

BARTHES, Roland. Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. 8ª. Ed. São Paulo: Cultrix, 2000.

FOUCAULT, Michel. Desembarçar-se da filosofia: sobre literatura. In: POL-DROIT, Roger. (org.) Michel Foucault: entrevistas. Tradução de Vera Portocarrero e Gilda Gomes Carneiro. São Paulo: Graal, 2006.

MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Tradução de Bertha Halpen Gurovitz. 3ª. Ed. São Paulo: Vozes, 2005.




Um comentário:

  1. Alice N. que bacana conhecer e compreender, um pouco, da vizinha literatura potiguar e alguns literatos de poìsêis impossível.

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