quinta-feira, 28 de junho de 2012

MAIS UM CONTINHO ORDINÁRIO


A INVASÃO

Serguei não parava com as mãos. Um saco. Odiava aquele seu nervosismo. Por que se incomodar assim daquele jeito? Que se dane... Afinal, tratava-se, no fundo no fundo, só dessa angústia que nunca se resolve, essa coisa toda de existir. Preferia cegar de um olho a ter que se importar tanto.
Assim pensava Serguei sobre a última resenha publicada acerca de seu livro, recentemente lançado na pequena e latina capital. Com o jornal no colo, bebia a segunda cerveja numa tarde qualquer na esquina da Dr. Barata com a Travessa Aureliano.
E o que é literatura? me diga aí, nobre Sr. Crítico, pensava em responder, machucado nos seus brios de pretenso e negado escritor, mudando de posição na cadeira. E daí também que fosse só autobiografia disfarçada?, continuava Serguei nos seus devaneios ressentidos. Certamente essa besta nunca leu Bukowski. Dostoiévski, então, nem pensar. Quem escreveu mesmo Recordações da Casa dos Mortos depois de passar dez anos preso na Sibéria, hein, Sr. Crítico? A resposta pronta na ponta da caneta, o criticozinho metido a besta veria só uma coisa...
É que Serguei, como qualquer ser humano, tinha sua parcela de tolice. O escritor (pretenso) não percebia que, tal como o crítico literário da cidade (pigarro...) que zombara de seu livro, também ele caía em definições cabais e absolutas...
Mas outra parte de si pensava, por outro lado: e daí responder a essa criatura, se a pergunta efetiva não cessa de ecoar:
Onde vai parar essa joça?
Assim, Serguei boiava em águas lentas de autopiedade, entre outros pensamentos imperfeitos e vastas emoções, quando parou na calçada, junto à sua mesa, um jovem senhor.
Em algum lugar da cidade, operários erguiam edifícios, para o desespero do silêncio dos vizinhos.Em algum lugar da cidade, uma criança, recentemente alfabetizada, escolhia um livro na estante da pequena sala de leitura de sua escola. Em algum lugar da cidade, alguém machucava um coração.
Serguei encarou o jovem senhor à sua frente, já esperando, certamente, algum pedido. O homem, vestido com terno preto e puído, calçando tênis vermelhos, falou, com voz melodiosa:
- Na verdade, não é bem um pedido, e sim uma proposta...
Ligeiramente surpreso, Serguei continuou calado, colocando o jornal sobre a mesa. O estranho, olhando para o impresso, indagou:
- Muita bobagem publicada para o dia de hoje?
Com essa, Serguei riu, animado.
- Eu diria até demais, para um dia só... Sabe como são os jornalistas...
- Assim é a humanidade, sempre excesso. Poderia eu sentar-me?
Curioso com aquela figura, seus modos, traços e linguagem, estendeu a mão, apontando a cadeira. Por que não?
- Permita-me que me apresente – continuou a figura, com um salamaleque teatral – Ossian, ao seu dispor.
- Serguei.
Trocaram apertos de mão e sorrisos. Serguei sentia-se cada vez mais atraído. Que diabos quereria com ele aquela figura? Podia apostar que vinha alguma facada. Perguntou:
- O amigo aceita um copo?
- Não, obrigado, beberei uma água mineral.
E fez o pedido para o rapaz que servia no bar. Depois que ele deixou a garrafa sobre a mesa, o jovem senhor, observando o rapaz, anunciou:
- Esse aí não dura muito...
- Viu na sua bola de cristal?  - perguntou Serguei, divertido.
Em resposta, o homem apenas bebeu sua água: tomou de um só gole todos os 500ml da garrafa, como se tivesse uma sede de eternidade.
- De que deserto você vem? – brincou Serguei, tentando descobrir mais sobre aquela estranha figura.
- Vou lhe dizer mais – anunciou. E depois de uma pequena pausa, prosseguiu:
- Pode escrever no seu caderno: logo mais eles chegarão.
- Eles quem?
- Os invasores.
Vixe, pensou Serguei, mais um doidinho da bola. Era evidente, claro, como é que ele não tinha notado...
- Duvide você ou não, eles chegarão. Haverá pânico e terror porque eles chegarão em multidão e em silêncio. Soldados valentes prepararão suas armas, crentes histéricos clamarão suas preces, templos e campos de batalha serão o foco das transmissões via rádio, televisão e internet... Governantes confabularão, confusos, sobre o que fazer...
Serguei apenas ouvia, encantado com a verve apocalíptica do homem. Pensou em mandá-lo pastar, de uma vez, mas, ao contrário, quis provocá-lo, tentando ser irônico:
- Não me diga que são alienígenas... Ou é pura influência de Kaváfis...
- Mas ao susto inicial – prosseguiu o homem, sem parecer ouvir Serguei – eles hão de se mostrar amistosos. E o mundo acreditará que são amigos. E deixarão se seduzir. Entregarão presentes aos visitantes: flores em jarros e quadros de pintura. Doces raros e livros contando sua história.
Serguei, inconscientemente, desviou o olhar do homem, visualizando, mentalmente, a estranha cena descrita. A tarde seguia, lenta e normalmente.
- Não haverá guerras, mas sim vencidos. Os invasores hão de vencer. Tomarão conta das praias e montanhas, cercarão todas as mentes e corpos, sem possibilidades de fuga.
Fez outra pequena pausa, antes de sentenciar:
- A humanidade não será mais escrava de si mesmo. Mas deles, os outros.
E Serguei vislumbrou a multidão entorpecida, como se lobotomizada, seguindo em levas, no mesmo passo, na direção daquele desconhecido.
Até que um caminhão passou em frente ao bar onde estavam, buzinando estrondosamente, despertando Serguei de seu ligeiro embevecimento. Caiu em si:
- Que narrativa, hein?
O jovem senhor olhava para Serguei com olhos penetrantes.
- Pode escrever aí no seu caderno.
Serguei riu:
- Sim, claro, nem Stephen King conceberia...
- Mas tudo tem um preço.
Serguei parecia não ouvi-lo:
- Imagine o que o Senhor Crítico dirá, então...
O homem também não:
- Todos hão de ler sua história, durante muitos e muitos anos...
- Sim, e certamente estará no top dos mais vendidos e... Espera aí... Como sabe que eu escrevo?
- Mas tudo tem um preço.
- Que brincadeira é essa, hein?
Serguei foi ficando fulo. Imaginou alguns rostos, a divertir-se com sua ingenuidade. Olhou ao redor, a fim de ver o dono da peça.
Ninguém. O rapaz do bar palitava os dentes, olhando o abstrato, encostado no balcão. Um gato maltratado desfilava candidamente na calçada em frente. Na sarjeta, um bêbado ressonava o sono dos justos.
O homem levantou-se, empertigado. Tirou do bolso uma nota novíssima:
- Para a água.
E fez outro cumprimento exagerado. Afastou-se, sem dizer mais uma palavra, no seu terno preto e tênis vermelhos.
Serguei ficou ruminando aquele encontro inusitado. Cada tipo que aparece...
Terminou sua cerveja, pediu outra. Pegou novamente o jornal e pôs-se a ler outras matérias. Por fim, após alguns minutos, largou o jornal e contemplou a tarde por um instante.
As mãos não tremiam mais. Então, pegou seu bloco de anotações e começou a escrever vertiginosamente. E foi ali mesmo que seu olho esquerdo começou a comichar.

Um comentário:

  1. Ainda que tardiamente, mas vá lá!
    Só um cego da gota serena (pode ser do olho esquerdo) não vê a beleza deste conto.

    Abraços (de olhos abertos)
    Tião

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