O DEDO DO PÉ
Tinham a mesma idade e eram do mesmo signo
lunar. A diferença: uma patroa, outra empregada. Então, em certas manhãs,
enquanto uma passava o pano no chão, a outra saía à toa para saborear sua
contradição.
Ambas tinham uma filha, meninas também, com
quase a mesma idade. A patroa (que boazinha que ela era...) permitia que a
empregada (que sortuda que ela era...) levasse a filha para o trabalho.
Numa daquelas manhãs contraditórias, antes de
sair, a patroa-mulher cismou com uma coisa. As duas meninas, enquanto comiam
cereal com leite, divertiam-se com os trejeitos de um palhaço na TV. Soltavam
gargalhadas sonoras naquela beleza que pode ser a infância, o que chamou a
atenção dela, distraída no sofá com suas conjecturas. Olhou para as duas, observando
a cena, quando percebeu. O dedo do pé.
Que dedo feio! Horrorizou-se em pensamento. Era
o dedo mínimo, que, na criaturinha, parecia mais ínfimo ainda. O dedinho do pé
direito, quase imperceptível, mostrou-se para ela estranhamente grotesco e
monstruoso.
Um dedo. Um centímetro teria? Quantas léguas
trilharia aquele dedinho de pé? Quais os caminhos desconhecidos para se trilhar,
quais os labirintos a se percorrer?
Enquanto as meninas riam a valer, a mulher
saiu, incomodada por demais com aquela presença. Um dedo do pé. Passou o dia
fora, ocupada em distrações diversas, mas quando chegou em casa, no fim da
tarde, não pôde se controlar e fixou-se de pronto no dito cujo, quase escondido
na chinelinha gasta.
Foi tomar um banho, nauseada com aquela visão.
Como é que não vira aquilo antes, depois de tanto tempo? Após a ducha, não quis
jantar, ainda impressionada com o horror do dedinho. Rolou na cama por várias
horas, sem conseguir dormir. E quando finalmente adormeceu, sonhou.
Assim era seu sonho.
Sonhou que seguia por uma praia deserta. Isso
mesmo, de novo. Caminhava e parecia ser cedo, muito cedo, o sol mal saíra. Ia
pela risca onde as ondas morriam na areia, quando, subitamente, surgiu à sua
frente uma pequena caixa dourada e ornada, de puro ouro.
Ajoelhou-se e ao abrir a caixa, deparou-se com
o dedo já arroxeado, decepado de seu corpo.
Enojada, correu e correu quando viu uma porta e
correu em sua direção. Parou ofegante frente a ela, abriu e ao entrar deu com o
espetáculo.
Pessoas diversas, todas estranhas, homens e
mulheres, corriam desesperadas em todas as direções. Algumas caíam e eram
pisoteadas e uma fumaça negra cobria rostos e vultos numa sombra de pavor.
Acordou assustada, já atrasada para os
compromissos do dia. No trabalho foi que ouviu a notícia: um incêndio em uma
casa de show em outra cidade matou mais de duzentas pessoas.
Foi um dia péssimo. Com olheiras, discutiu com
um colega, derramou café na blusa branca, errou nas contas e não conseguiu
achar em nenhuma das gavetas uns papeis de que precisou. E logo que chegou em
casa, exausta, um rostinho feliz veio lhe saudar com aquela presença
terrificante: o dedo mínimo do pé direito, ainda pavorosamente horrível.
Deus do céu, que asco! Trancou-se mal-humorada
no quarto, mal falou com ninguém. E quando dormiu, outro sonho veio assombrar
sua noite.
Dessa vez, saindo de um quarto fechado e escuro
feito breu, deu de cara com uma praia cheia de cadáveres. Candidamente, ondas
batiam nos corpos inertes que ocupava a praia às centenas, aos milhares. Entre
os mortos, homens e mulheres todos nus, avistou, ao longe, novamente a mesma
caixa de ouro reluzente.
Não foi trabalhar nesse dia. E saiu logo cedo,
procurando não esbarrar com a visão ameaçadora. Auele dedo aterrorizava seu
pensamento como prenúncio ameaçador do mal. Que seria aquilo? Que fantasma ou
demônio funesto aquele a lhe espreitar?
Andou a esmo o dia todo, sem destino certo,
distraída no sinal vermelho, esquecida entre vitrines e bancas de revista. E
assim feito zumbi, viu a manchete a escorrer o sangue lucrativo: mais de três
mil mortes com o tsunami no litoral de um outro país.
Ao acordar, suada, na alta madrugada, teve
certeza: era o dedo. O incêndio, a onda gigante, era tudo culpa do dedo! Claro!
Claro, claro, claro. E enquanto o dedo pisasse sobre a terra, mortes
aconteceriam até que... até...
Não teve dúvida. Aquele dedo tinha que ser
expurgado. Cortado, amputado, sangrado e dizimado. Precisava virar pó para
fazer cessar a fúria da Mãe Terra. Era preciso desmaterializar aquele dedo do
planeta para rematerializá-lo em algo outro. Outra coisa. Outra vida. Sim,
porque o mundo é assim mesmo absurdo e tudo cabe e se explica no dedo mínimo do
pé de uma criança.
Mas como fazer? O que sua empregada iria
pensar? Jamais permitiria aquele gesto, evidentemente. Não aceitaria nunca,
julgaria uma atrocidade, não perceberia a magnitude do ato brutal.
E, confusa, odiava a si mesma por nunca ter
percebido, em todos aqueles anos, aquele dedo maléfico. Mas que atitude poderia
ter tomado antes? Como iria saber? Não havia jeito, a solução era agir logo e
de maneira mesmo trágica, quaisquer que fossem as consequências. É, mas como
fazer?
Uma anestesia potente para fazer a menina
dormir profundamente? Então o golpe rápido e fatal, dando fim ao dedo com o
facão de carne da cozinha? Ah, o horror, o horror, gemia, miserável, imaginando
já o rosto de censura e ódio da empregada-mulher.
Três dias depois, sem dormir e sem comer,
obcecada com a ideia fixa – o espectro do dedo a lhe angustiar Após o almoço,
numa tarde sonolenta, ordenou, voz decidida de patroa:
– Vai lá na mercearia e me traz o que tá nessa
lista.
As meninas dormiam a sesta juntas, na mesma
cama. Dali a um instante, mesmo que já fosse pelo meio do quarteirão, a
empregada ouviu os gritos de dor, confusa com o estranho poema que estava escrito
no papel em vez de uma lista de compras, enquanto a mulher-patroa, agarrada à própria
filha, tentava lhe consolar:
– Foi preciso, minha filha, foi preciso...
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