quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

MAIS UM CONTINHO ORDINÁRIO


O DEDO DO PÉ
Tinham a mesma idade e eram do mesmo signo lunar. A diferença: uma patroa, outra empregada. Então, em certas manhãs, enquanto uma passava o pano no chão, a outra saía à toa para saborear sua contradição.
Ambas tinham uma filha, meninas também, com quase a mesma idade. A patroa (que boazinha que ela era...) permitia que a empregada (que sortuda que ela era...) levasse a filha para o trabalho.
Numa daquelas manhãs contraditórias, antes de sair, a patroa-mulher cismou com uma coisa. As duas meninas, enquanto comiam cereal com leite, divertiam-se com os trejeitos de um palhaço na TV. Soltavam gargalhadas sonoras naquela beleza que pode ser a infância, o que chamou a atenção dela, distraída no sofá com suas conjecturas. Olhou para as duas, observando a cena, quando percebeu. O dedo do pé.
Que dedo feio! Horrorizou-se em pensamento. Era o dedo mínimo, que, na criaturinha, parecia mais ínfimo ainda. O dedinho do pé direito, quase imperceptível, mostrou-se para ela estranhamente grotesco e monstruoso.
Um dedo. Um centímetro teria? Quantas léguas trilharia aquele dedinho de pé? Quais os caminhos desconhecidos para se trilhar, quais os labirintos a se percorrer?
Enquanto as meninas riam a valer, a mulher saiu, incomodada por demais com aquela presença. Um dedo do pé. Passou o dia fora, ocupada em distrações diversas, mas quando chegou em casa, no fim da tarde, não pôde se controlar e fixou-se de pronto no dito cujo, quase escondido na chinelinha gasta.
Foi tomar um banho, nauseada com aquela visão. Como é que não vira aquilo antes, depois de tanto tempo? Após a ducha, não quis jantar, ainda impressionada com o horror do dedinho. Rolou na cama por várias horas, sem conseguir dormir. E quando finalmente adormeceu, sonhou.
Assim era seu sonho.
Sonhou que seguia por uma praia deserta. Isso mesmo, de novo. Caminhava e parecia ser cedo, muito cedo, o sol mal saíra. Ia pela risca onde as ondas morriam na areia, quando, subitamente, surgiu à sua frente uma pequena caixa dourada e ornada, de puro ouro.
Ajoelhou-se e ao abrir a caixa, deparou-se com o dedo já arroxeado, decepado de seu corpo.
Enojada, correu e correu quando viu uma porta e correu em sua direção. Parou ofegante frente a ela, abriu e ao entrar deu com o espetáculo.
Pessoas diversas, todas estranhas, homens e mulheres, corriam desesperadas em todas as direções. Algumas caíam e eram pisoteadas e uma fumaça negra cobria rostos e vultos numa sombra de pavor.
Acordou assustada, já atrasada para os compromissos do dia. No trabalho foi que ouviu a notícia: um incêndio em uma casa de show em outra cidade matou mais de duzentas pessoas.
Foi um dia péssimo. Com olheiras, discutiu com um colega, derramou café na blusa branca, errou nas contas e não conseguiu achar em nenhuma das gavetas uns papeis de que precisou. E logo que chegou em casa, exausta, um rostinho feliz veio lhe saudar com aquela presença terrificante: o dedo mínimo do pé direito, ainda pavorosamente horrível.
Deus do céu, que asco! Trancou-se mal-humorada no quarto, mal falou com ninguém. E quando dormiu, outro sonho veio assombrar sua noite.
Dessa vez, saindo de um quarto fechado e escuro feito breu, deu de cara com uma praia cheia de cadáveres. Candidamente, ondas batiam nos corpos inertes que ocupava a praia às centenas, aos milhares. Entre os mortos, homens e mulheres todos nus, avistou, ao longe, novamente a mesma caixa de ouro reluzente.
Não foi trabalhar nesse dia. E saiu logo cedo, procurando não esbarrar com a visão ameaçadora. Auele dedo aterrorizava seu pensamento como prenúncio ameaçador do mal. Que seria aquilo? Que fantasma ou demônio funesto aquele a lhe espreitar?
Andou a esmo o dia todo, sem destino certo, distraída no sinal vermelho, esquecida entre vitrines e bancas de revista. E assim feito zumbi, viu a manchete a escorrer o sangue lucrativo: mais de três mil mortes com o tsunami no litoral de um outro país.
Ao acordar, suada, na alta madrugada, teve certeza: era o dedo. O incêndio, a onda gigante, era tudo culpa do dedo! Claro! Claro, claro, claro. E enquanto o dedo pisasse sobre a terra, mortes aconteceriam até que... até...
Não teve dúvida. Aquele dedo tinha que ser expurgado. Cortado, amputado, sangrado e dizimado. Precisava virar pó para fazer cessar a fúria da Mãe Terra. Era preciso desmaterializar aquele dedo do planeta para rematerializá-lo em algo outro. Outra coisa. Outra vida. Sim, porque o mundo é assim mesmo absurdo e tudo cabe e se explica no dedo mínimo do pé de uma criança.
Mas como fazer? O que sua empregada iria pensar? Jamais permitiria aquele gesto, evidentemente. Não aceitaria nunca, julgaria uma atrocidade, não perceberia a magnitude do ato brutal.
E, confusa, odiava a si mesma por nunca ter percebido, em todos aqueles anos, aquele dedo maléfico. Mas que atitude poderia ter tomado antes? Como iria saber? Não havia jeito, a solução era agir logo e de maneira mesmo trágica, quaisquer que fossem as consequências. É, mas como fazer?
Uma anestesia potente para fazer a menina dormir profundamente? Então o golpe rápido e fatal, dando fim ao dedo com o facão de carne da cozinha? Ah, o horror, o horror, gemia, miserável, imaginando já o rosto de censura e ódio da empregada-mulher.
Três dias depois, sem dormir e sem comer, obcecada com a ideia fixa – o espectro do dedo a lhe angustiar Após o almoço, numa tarde sonolenta, ordenou, voz decidida de patroa:
– Vai lá na mercearia e me traz o que tá nessa lista.
As meninas dormiam a sesta juntas, na mesma cama. Dali a um instante, mesmo que já fosse pelo meio do quarteirão, a empregada ouviu os gritos de dor, confusa com o estranho poema que estava escrito no papel em vez de uma lista de compras, enquanto a mulher-patroa, agarrada à própria filha, tentava lhe consolar:
– Foi preciso, minha filha, foi preciso...

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