VENENO DA VIDA
Para Eulício Farias de Lacerda
Há três dias as folhas de flor-de-cobra aguardavam no velho armário da despensa. Mas Lúcia não se decidia. E enquanto cuidava dos afazeres na casa de Doutor Manoel, ficava maquinando a ocasião: pela tardinha, quando ele fosse tomar o chá de todos os dias. Nem chegaria a ver a hora do Ângelus... Então, Lúcia o colocaria na cama, como todas as noites, e no dia seguinte simplesmente daria a notícia a uma velha e sempre ausente irmã dele, por telefone:
– Foi dormir e não acordou...
Fazia mais de vinte anos que Lúcia trabalhava na casa de Doutor Manoel. Era uma menina ainda quando foi viver lá e presenciou alguns dos principais momentos importantes de sua vida: quando ele se aposentou e deu um jantar memorável na história da cidade, quando foi consagrado na Academia, quando Dona Mocinha faleceu e ele ficou viúvo, quando teve o AVC... Isso já tinha uns três ou quatro anos. Desde então ele nunca mais foi o mesmo. Sempre fora um homem reservado, sisudo, mas amável, cordial, mas trancado, sempre isolado no seu mundo de livros e papéis. Cheio de altivez. E aí, então, um dia, Doutor Manoel tornou-se uma espécie de criança, a depender de Lúcia para tudo, sem nenhum pejo pela intimidade destituída. Era Lúcia quem banhava, vestia, alimentava e só ela entendia os grunhidos que ele soltava quando queria se fazer comunicar. Aquele velho de cabelos brancos e corpo encurvado, uma simples sombra da fragilidade, não lembrava em nada o Doutor Manoel que um dia existira, glorioso e admirado por todos.
Numa tarde, quando Lúcia o sentara à mesa para o chá com biscoitos de todos os dias, ao voltar da cozinha com o bule, notou uma lágrima furtiva no rosto dele. Uma pequena lágrima que caía lentamente pela face encarquilhada de Doutor Manoel. Doutor Manoel! Ela, que nunca vira nenhuma demonstração sentimental daquele homem, ficou desconcertada, num misto de desaprovação e piedade.
Mas quem era ela para sentir pena de alguém? E das penas dela, quem é que se condoía? Sempre servindo aos outros, nunca ninguém se preocupou com suas alegrias e tristezas mais íntimas e, de repente, aquele homem que um dia foi um gigante aparecia chorando para ela, a empregada. Como seria possível?
Na noite daquele dia, Lúcia, sem conseguir dormir, teve a ideia. E no sábado seguinte, na feira, perguntou ao raizeiro seu conhecido:
– Consegue pra mim flor-de-cobra?
Um mês se passou até que o homem trouxesse a erva. Uma plantinha de nada, mal se acreditaria no seu poder fatal. Lúcia pagou a quantia exorbitante (afinal, era uma erva bem difícil de se encontrar) e foi para a casa, com as demais compras da feira. Chegou, guardou os mantimentos e foi até o armário velho da despensa da cozinha. Ficou parada, pensativa por uns instantes e deixou lá a flor-de-cobra.
Novamente ali estava, alguns dias depois, diante da decisão a ser praticada. Era instantâneo, sabia, talvez nem tempo daria de sentir qualquer dor. Olhava para o armário empoeirado, pensativa, enquanto Doutor Manoel aguardava, distante, o chá de mais um dia.
No fogão, a chaleira apitava.
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