O RÁDIO
Nada na mente. Nem na geladeira. Quis fumar um cigarro qualquer da noite passada. Não achou. Conformou-se. Na cozinha, esbarrando em baratinhas, colocou uma panela com água no fogo e sentou-se, à espera. Chá de boldo ou macarrão com alho? Eram as opções. Mas, na dúvida, ela sabia perfeitamente: não faz diferença, tudo vai passar.
Pensamento solto, vagando no abstrato do nada de coisa nenhuma, foi por acaso que o percebeu. Estava sobre a prateleira da pia. Sujo, encardido pela poeira gordurosa do esquecimento, o pequeno rádio amarelo de pilha que um dia Elisa trouxe para ela.
Numa tarde amena, tranqüila, sem dores da existência. Porque elas se amavam. Elas se queriam e o mundo tinha assim sua lógica. Naquela tarde estava de folga, era no tempo em que dançava no programa do Canal 13. Comia uma maçã com as pernas esticadas para cima, para ajudar na circulação, quando Elisa chegou, loira e perfumada como era:
– Olha o que eu te trouxe...
– Um rádio?!
Amou sinceramente aquele presentinho besta, como amava Elisa e tudo o mais que vinha dela: palavras, gestos, beijos. Amava Elisa. Naquela época, ninguém entendia. Porque Elisa era mulher e mais velha alguns anos e isso era um tabu. Não importava. Ainda que não pudessem ostentar livremente o seu amor, elas se amavam e isso, para ela, era o que importava.
No fogão, a água fervia. Venceu o macarrão, afinal.
Moravam juntas há dois anos. Elisa trabalhava no interior, só chegava na sexta-feira à noite. E ela se apresentava aos domingos pela tarde, ensaiando durante a semana as músicas coreografadas que dançaria no programa, junto com mais cinco moças. O dia que tinham para si era o sábado. Ela fritava ovos, fazia café e acordava Elisa com mimos na orelha. Depois era Elisa que lhe fazia massagem nas pernas e pés. Ligavam o rádio e ficavam à toa, folheando uma revista, falando mal da vida alheia, rindo por bobagem, até a hora do almoço. Saíam para almoçar. Às vezes emendavam um cinema. E assim iam vivendo, inocentes, felizes.
O macarrão ficou uma pasta mole e sem sabor, o alho era pouco e a vontade menor ainda. Queria mesmo era um cigarro. Ainda assim comeu, resignada. No mesmo canto, o rádio a encarava.
Elisa telefona um dia, dizendo que não vinha no fim de semana. Ia ficar lá, numa reunião de planejamento do grupo e não sei o quê. Tudo bem. Elas se amavam. Acreditava nisso. Nem lhe passou pela cabeça que Elisa tinha um homem. Um homem. Ela não foi suficiente para Elisa. E só soube muito tempo depois, após muitas reuniões de planejamento. Soube casualmente, porque viu os dois num restaurante, quando saía do ensaio. Foi até lá. Fez cena. Gritos e choro. Em vão.
Quando Elisa foi pegar suas coisas no apartamento, ela se desesperou. Jogou o rádio contra ela, acertando a parede. Que era uma vaca mentirosa. Depois se ajoelhou, implorando sua volta. Que era a glória de sua vida. Agarrou-se às suas pernas, em prantos infantis. Elisa era a frieza em pessoa. Não recuou. Deixou-a lá, rádio e vida em cacos.
Depois não pôde mais dançar. Era impossível ensaiar passos, ficar os domingos com um sorriso idiota no rosto, requebrando-se para uma platéia cretina. Logo o Canal 13 a dispensou. Foi então beber, vagabundar em inferninhos e sentir o peso da existência.
E ali estavam, ela e o rádio, na mesma solidão. Não lembrava mais como ele foi parar ali na prateleira da cozinha. Talvez nem prestasse mais, faltando pedaços e tanto tempo sem tocar. Ficou quieta, pensando, pensando... Não faz diferença, tudo vai passar. Decidiu-se, então: pegou o pequeno rádio amarelo e girou o botão.
Clic.
O mesmo chiado. Um arrepio correu pelo corpo inteiro. Elisa estava ali, rindo, com seus cabelos loiros, pedindo mimos na orelha. Tentou sintonizar alguma freqüência. Aos poucos, distinguiu uma canção, distante, ligeira. Como tudo mais.
No canto, as baratinhas espiavam.