quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A PROPÓSITO DO CARNAVAL: DUAS VISÕES SOBRE O RISO – por Cellina Muniz




O riso pode ser considerado um dos elementos que melhor definem a contradição e pluralidade humana. É como ressalta Minois (2003), no seu trabalho de peso sobre a história das práticas e teorias do riso:

Alternadamente agressivo, sarcástico, escarnecedor, amigável, sardônico, angélico, tomando as formas da ironia, do humor, do burlesco, do grotesco, ele é multiforme, ambivalente, ambíguo (...) Na encruzilhada do físico e do psíquico, do individual e do social, do divino e do diabólico, ele flutua no equívoco, na indeterminação (MINOIS, 2003, p. 16).

Assim, a presença do risível nas manifestações literárias acompanha a própria história da humanidade, haja vista a própria condição da espécie humana de rir e de provocar o riso. E também não é de hoje que o riso pontua muitas e importantes reflexões teóricas.
Na sua Poética, um dos muitos tratados que compõem o Copus Aristotelicum, trata das representações literárias quanto aos seus meios, objetos e maneiras (ARISTÓTELES, 1996, p. 33), mas todas necessariamente compreendidas como imitação de pessoas em ação, fosse em suas virtudes, fosse em seus vícios. Estabelece, assim, uma distinção fundamental entre os gêneros tragédia e comédia, e é aí que o riso surge através de um traço diferenciador básico: Nessa mesma diferença divergem a tragédia e a comédia; esta os quer imitar inferiores e aquela superiores aos da atualidade (ARISTÓTELES, 1996, p. 32).

A comédia, gênero desenvolvido a partir das improvisações sobre os ditirambos (hinos de louvor a Dioniso), bem como a poesia satírica, seriam maneiras de representação poética que teriam como objeto a imitação de pessoas inferiores, diferentemente das tragédias e poesias épicas, que teriam como objeto os homens considerados superiores aos da realidade. Assim, embora fosse menos normativo que descritivo, Aristóteles não deixa de estabelecer uma relação de juízo negativo sobre a comicidade, a partir de uma concepção dicotômica, ao assinalar:

A comédia, como dissemos, é imitação de pessoas inferiores; não, porém, com relação a todo vício, mas sim por ser o cômico uma espécie de feio. A comicidade, com efeito, é um defeito e uma feiúra sem dor nem destruição (ARISTÓTELES, 1996, p. 35).

Abre-se, então, uma leitura do cômico como reprovação ao vício, ao feio e ao defeituoso, e embora Aristóteles não forneça elementos sobre o que seja considerado ridículo, até os renascentistas prevalecerá essa concepção de riso como atitude de reprovação ao ridículo (cf. SKINNER, 2004, p. 34).
Visão distinta sobre o riso é a de Mikhail Bakhtin, que atentou para a alegre relatividade de tudo (BAKHTIN, 1999, p. 125), ao tratar da obra de François Rabelais. Bakhtin considera o riso como o elemento mais emblemático da cultura popular medieval e renascentista, principal instrumento de manifestação de uma cosmovisão carnavalesca. Analisando o carnaval, entre os séculos XIV e XVI, Bakhtin o compreende como a afirmação festiva e ritual da relatividade do mundo, marcado por elementos como o livre contato familiar entre os homens, a excentricidade, as alianças e a profanação (BAKHTIN, 1997), o que se estende, segundo me parece, até os dias de hoje.

O livre contato implica a revogação de todo o sistema hierárquico da vida normatizada e todas as formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta, etc. (BAKHTIN, 1997, p. 123). Assim, todas as desigualdades sociais (de sexo, de idade, de classe etc.) ficam abolidas durante o carnaval.

A excentricidade carnavalesca diz respeito, pois, à libertação dos comportamentos, gestos e palavras de qualquer imposição hierárquica, o que se torna, aliás, motivo para percebê-los como excêntricos e inoportunos do ponto de vista da lógica do cotidiano não-carnavalesco (BAKHTIN, 1997, p. 123).
A familiaridade das mésalliances está relacionada à quebra propriamente dita das oposições. Como assinala o autor (BAKHTIN, 1997, p. 123), o carnaval aproxima, reúne, celebra os esponsais e combina o sagrado com o profano, o elevado com o baixo, o grande com o insignificante, o sábio com o tolo, etc.
Assim, têm lugar as profanações, os sacrilégios e as indecências carnavalescos que se relacionam com a força produtora da terra e do corpo (BAKHTIN, 1997, p. 123), a enfatizar o que é objeto de negação de uma tradição elitista e erudita que prioriza o mundo abstrato das ideias.
O carnaval, portanto, uma festa popular de insurreição de poderes, tem no riso seu fator mais singular, caracterizado de modo também bastante peculiar: o riso carnavalesco da Idade Média e Renascimento é um riso do povo, em que todos riem, o riso é geral; é um riso universal, em que o mundo inteiro parece cômico e é percebido e considerado em seu aspecto jocoso; e é um riso ambivalente, porque nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente (BAKHTIN, 1999, p. 10).
Referências
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção Os Pensadores).

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e Renascimento: o contexto de François Rabelais. 4a ed. Tradução de Yara Frateschi. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da UnB, 1999.
________________. Problemas da poética de Dostoiévski. 2a ed. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
MINOIS, George. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Elena Ortiz Asumpção. São Paulo: Editora da UNESP, 2003.
SKINNER, Quentin. Hobbes e a teoria clássica do riso. Tradução de Alessandro Zir. São Leopoldo, RS: Editora UNISINOS, 2004. (Coleação Aldus).

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