sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

MAIS UM CONTINHO ORDINÁRIO

Ninguém deu por falta, ninguém pediu, ninguém reclamou. Mas ei-los outra vez: os continhos ordinários de Alice N.

NO MEIO DO CAMINHO, A PRAIA

Não teria mais que oito anos. Portava-se feito homem – além de uma musculatura precocemente desenvolvida, era sério em sua missão: vender cofres de madeira, talhados em forma de casinhas, em mais um domingo de sol na Praia do Meio.
Trabalhar, estava ali para trabalhar, acima de tudo, mas, ai, com aquele sol, com aquele mar, com todo aquele povo brincando, comendo, bebendo, relaxando, vivendo... Entre os risos e gritos, no meio das gentes de todos os tipos – crianças, velhos, moços e mulheres – era preciso concentração e força de vontade para perceber possíveis compradores e não se distrair com os divertimentos convidativos da manhã. Fácil não era mesmo.
Por isso seguia carrancudo, nos passinhos medidos, sob o peso das tralhas que levava.
Até que não deu mais. Uma voz impregnante não parava de soar na mente e pinicar por todo corpo. Voz da Vontade:
– Vamo cair no mar?
Olhou para as mesas, aquele ali, ele tem boa pinta, foi decidido oferecer a mercadoria e diante do pronto não, pediu:
– Olha pra mim enquanto que eu vou no mar?
Grande manobra para depositar a carga no chão e sobre as cadeiras vazias. Depois tirar a pequena bermuda gasta, dobrá-la sobre a mesa e só aí então: carreira desenfreada.
Ai, água que nos lava e nos redime de todas as dores do mundo! Salve Iemanjá! Salve Netuno, salve Moby Dick, Capitão Nemo e seu Antônio das Rocas. Viva o mar!
A alegria do mergulho arriscado e a completude do retorno com o corpo a boiar, deixando se levar, ao sabor das ondas que vierem...
Era assim o banho quando de repente – oh, por que não esquecer? – a lembrança da mãe, brandindo cinto na mão, furiosa, saltou à mente e lhe avisou – hora de ir, retomar a venda das casinhas, cofres de felicidade futura, pura ilusão.
Voltou, o corpo moreno e miúdo brilhando a água salgada e a emoção. Vestiu-se e começou a juntar os sacos com os cofres, sendo que teve a infeliz ideia de contar as casinhas. Eram dez, a princípio.
Mas ali, naquele instante, havia nove.
Bronca...
Engolindo em seco, com o sal do mar nos lábios, contou novamente. Duas, quatro, seis, nove. Não tinha jeito. Percebeu, sem saber o que fazer, que o moço olhava para ele, como quem se põe aguardando. Encarou, então, sem desviar o olhar:
– O senhor vai ficar com ela?
Primeiro, uma rápida expressão de espanto foi o que viu no rosto do estranho, com aquele bigode a pretender compensar a careca. Depois, viu a careta de um riso forçado, mas com traços já enviesados de embriaguez.
– Ficar com o quê? – falou, bancando o sonso.
Continuava a encarar o estranho, pés riscando a areia da praia, e respondeu, quase num sussurro:
– A casinha. É um cofre.
– E o que você tá querendo dizer? – continuou o homem, com língua enrolada.
– Era dez casinha, agora só tem nove...
O estranho levantou-se e, de pé, fez-se enorme.
– Cai fora daqui, moleque!
Não teve opção. Assim como era obrigado a vender cofres no domingo na praia, teve que recolher seus sacos e ir embora. Lançou ainda um olhar de ódio profundo para o estranho, que emborcava o copo de cerveja.
Depois, mais tarde, ao pôr do sol, estirou-se sobre a murada do cais, a chupar gelo da fábrica e a ver os barcos chegando e saindo. E na sua infância, com o corpo quente pela cinturada no lombo, sentia: eu vou também! Vou seguir para lugar nenhum que não o aqui, não o agora. Vou cantar canção de despedida a doer no coração.
E ele, no seu corpinho esguio debruçado sobre a murada, magro feito cão, olhava, olhava, olhava e com os barcos que chegavam e partiam do Canto do Mangue aprendia  sobre as lonjuras do mundo e do tempo.

Um comentário:

  1. Nada melhor do que poder ler um texto e imaginar cada cena. Seus contos são os melhores!

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