segunda-feira, 11 de março de 2013

MAIS UM CONTINHO ORDINÁRIO (DEDICADO À PATRÍCIA MELO)



ESCREVENDO NO ESCURO TAMBÉM
Largou o livro, numa expressão de enfado. Ô ódio! Vai escrever bem assim no inferno, sua maldita. Foi até a geladeira e pegou uma maçã, o estômago doía. Gastrite ou úlcera? O exame era na sexta. Na quinta tinha a panfletagem. Olhou para o fanzine no chão, ainda por terminar. Quero lá saber de poesia marginal agora. Quero lá saber de nada.
É que a lua estaria cheia dentro de algumas horas, sabia. É que seus hormônios infames a atacavam novamente, sabia também. E daí? É que não fazia outra coisa a não ser pensar na criatura. Dois anos naquela joça: ia dormir pensando na criatura, acordava pensando na criatura e quando sonhava, era a criatura o objeto de suas condensações e deslocamentos oníricos. Uma verdadeira praga. Ô ódio!
Cara Patrícia. Eu te adoro. Você escreve como ninguém. Adoro seus romances, adoro seus contos. Mas você não supera Clarice, queridinha. Isso não.
Por falar em Clarice, já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas. Isso ela leu numa reportagem sobre as anotações de leitura de Ana Cristina. Outra louca atacada. Teria ela também gastrite?
Ou úlcera?
Quem, Clarice ou Ana Cristina?
A Patrícia...
É, Leminski, haja hoje para tanto ontem. Tinha ímpetos de pegar no telefone, ligar qualquer número ao acaso e perguntar para quem quer que atendesse:
- Alô?
- Me diga uma coisa, por gentileza: o que fazer com essa dor a me roer as entranhas, com essa obsessão a me triturar os nervos, com esses hormônios a me envenenarem o sangue e com essa lua a me revirar pelo avesso?
- Vai lavar uma louça, minha filha. Ou pegar no cabo de uma enxada, também tá valendo. Já viu as estatísticas de quantas crianças morrem por dia de inanição?
Tu, tu, tu...
Somente tu.
Olhou para a tela vazia do computador. Nada, totalmente no escuro.
Querida Patrícia. Seu conselho, de começar a escrever seja lá o que for não adiantou de nada. Continuo às cegas. Aliás, já te falei que te adoro? Mas não mais que Clarice, claro...
O estômago doía. No chão, o fanzine esperava por ser finalizado. Pegou novamente o livro, resignada. Logo mais a lua estaria no céu. E em uma semana estaria minguante.

2 comentários:

  1. Mas que continho hem! A veia literária de Alice N. cada vez mais, pulsa divinamente ,na mente. Seja "escrevendo no escuro também"!
    ou não! É feito poesia de cego . . .

    ResponderExcluir
  2. Alice,
    Gostei do texto!
    Obrigada,
    Patricia Melo

    ResponderExcluir