domingo, 13 de novembro de 2011

A PRENSA E AS FONTES: DOM QUIXOTE NA OFICINA DE IMPRESSÃO



Este é o título de um dos capítulos que compõem o livro “Inscrever & Apagar”, de Roger Chartier, o renomado historiador do livro e da leitura. O livro trata de questões fundamentais para se pensar o livro como um objeto histórico e cultural e, especificamente nesse capítulo, Chartier toma o caso de Dom Quixote para rever como se organizavam as funções, técnicas e etapas imprescindíveis para a publicação de um livro no século XVII.
Segundo Chartier, a presença de uma oficina de impressão na narrativa de Cervantes (entre os capítulos LXI e LXVI) não é casual: “ela introduz, no próprio livro, o lugar e as operações que tornam sua publicação possível” (fato já identificado por Borges, aliás).
E prossegue o historiador:
Cervantes inicia seu leitor na divisão e multiplicidade das tarefas necessárias para que um texto venha a ser um livro: a composição das páginas pelos compositores (componer), a revisão das primeiras folhas impressas a título de provas (corregir), a retificação, pelos compositores, dos erros identificados nas páginas corrigidas (enmendar) e, finalmente, a impressão dos moldes, ou seja, do conjunto de páginas destinadas a ser impressas de modo idêntico, do mesmo lado de uma folha de impressão, pelos operários encarregados da prensa (tirar). (CHARTIER, 2007, p. 87-88).
A descrição de Cervantes coincide com o que regulavam diversos manuais de impressão e tipografia da época, todos destacando o papel do revisor. Segundo esses manuais apontados por Chartier, cabia ao revisor tanto identificar erros dos compositores, seguindo as provas impressas do texto a partir da leitura em voz alta da cópia original, como também atuar como censor, buscando (e recusando) algo que contrariasse a Inquisição, “a fé, o rei e a coisa pública”. O revisor, assim, era aquele que dava forma final ao livro, sendo preciso tanto compreender a caligrafia original como também perceber as intencionalidades do autor. Isso sem falar nos conhecimentos necessários para exercer seu ofício: gramática, teologia, direito e língua latina, além de alguns rudimentos sobre as técnicas de impressão.
Desse modo, o leitor do século XVII sequer poderia imaginar (como talvez ainda não imagine, no século XXI) que, se o corpo do livro é o resultado do trabalho de editores e impressores, sua alma não é confeccionada apenas pelo autor, mas recebe sua forma também daqueles que trabalham aspectos aparentemente banais, mas essenciais para a leitura de uma obra: pontuação, ortografia, paginação, estilo e textualidade, elementos que passam pelas mãos (criteriosas ou não) dos revisores de ontem e de hoje.
CHARTIER, Roger. Inscrever & Apagar. Tradução de Luzmara Curcino Ferreira. São Paulo: Editora UNESP, 2007.


quarta-feira, 9 de novembro de 2011

MAIS UM CONTINHO ORDINÁRIO

PÂNICO


Ano-Novo, velhas opiniões formadas sobre tudo.
Para tentar escapar da angústia que aos poucos chegava, foi ao supermercado.
Queria crer que seria fácil. Olhava a redor, as pessoas como floresta, eletrodomésticos em vez de bichos, prateleiras e cartazes em vez de colinas e vales, olhava tudo sem nada ver. Queria crer que era fácil e simples. A resposta ali na frente, acenando com sorriso destrambelhado. Eis me aqui, eis-me aqui!!! Muito fácil, sim. Uma questão de concentração, de foco. Energia canalizada e tudo resolvido!
Tornou a erguer a cabeça. A fila caminhava, sem maiores dramas e delongas. O painel luminoso à frente indicava: mais três pessoas e chegava a sua vez.
Enquanto isso, a música do piano elétrico continuava, com os hits americanalhados e contumazes. Crianças, subitamente amigas, correndo ao redor de uma grande árvore de natal, o homem anunciando ao microfone as ofertas de última hora. Mal sabia ele que é sempre a última hora.
Enquanto amigos de academia se organizavam em torno dos sushis no balcão da lanchonete e mulheres donas de família comparavam os preços e embalagens das marcas e caixas de sabão em pó, ela lia pela milésima vez o rótulo na garrafa que tinha em mãos, refúgio para o surto que se anunciava.
Um Merlot. Não importa isso aqui. Não importa a sua taquicardia, os homens do campo continuarão plantando e colhendo nos vinhedos aquelas melhores cepas. O consolo, a vida continuando, o mundo girando além dela, pó que retorna ao pó.
Aliás, onde encontrar pó naquela hora, naquela cidade?
Sem a menor condição de possibilidade. E, pensando bem, nem queria tanto assim, pensou, fungando abstraidamente.
O aviso do painel mandou mais um para o abate. A fila do caixa andou e parou novamente. Segurou mais firme a garrafa com o Merlot – portal de fuga – e respirou fundo, dando intervalos de segundos a cada expiração, conforme aprendeu séculos antes. Sim, está tudo na nossa mente. E pode ser só uma questão de técnica.
Ah, a técnica...
Talento, cadê você?
É a Técnica, que não me dá sossego...
Manda essa vadia embora. Explica quem é que manda.
Não. De repente ela vai mesmo. E o resultado pode ser o mesmo ou pior – ostracismo, falta de atitude...
Atitude, cadê você?
Trancada no quarto enquanto o mundo desaba lá fora. E é uma questão de tempo até derrubarem essa porta.
O que resta?
A esperança. Pandora não te falou?
Por isso as festas são necessárias...
Pois é, as opiniões...
O suor frio, frio na alma.
Para uns, uma questão de guerra santa: uma bomba bem armada, uma ocasião propícia e um segundo para a revelação do Paraíso. Para outros, uma questão de meditação: respire fundo, sinta as falanges do dedinho do pé e descubra. Conheça-se.
Quando sua vez na fila do caixa chegou, a respiração voltou ao ritmo normal. Depois de todo aquele terror, só conseguiu desejar que aquele terroir não fosse também tão terrível...

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

EM MINAS, COM BANDEIRA

POEMETO ERÓTICO

TEU CORPO CLARO E PERFEITO,
- TEU CORPO DE MARAVILHA,
QUERO POSSUÍ-LO NO LEITO
ESTREITO DA REDONDILHA...

TEU CORPO É TUDO O QUE CHEIRA...
ROSA... FLOR DE LARANJEIRA...

TEU CORPO, BRANCO E MACIO,
É COMO UM VÉU DE NOIVADO...

TEU CORPO É POMO DOIRADO...

ROSAL QUEIMADO DE ESTIO,
DESFALECIDO EM PERFUME...

TEU CORPO É A BRASA DO LUME...

TEU CORPO É CHAMA E FLAMEJA
COMO À TARDE OS HORIZONTES...

É PURO COMO NAS FONTES
A ÁGUA CLARA QUE SERPEJA,
QUE EM CANTIGAS SE DERRAMA...
VOLÚPIA DE ÁGUA E DA CHAMA...

A TODO O MOMENTO O VEJO...
TEU CORPO... A ÚNICA ILHA
NO OCEANO DO MEU DESEJO...

TEU CORPO É TUDO O QUE BRILHA,
TEU CORPO É TUDO O QUE CHEIRA...
ROSA, FLOR DE LARANJEIRA...

Manoel Bandeira

sábado, 22 de outubro de 2011

dois poemetos em que me meto

O SEGREDO DO TEMPO

No infinito
Minhas palavras
Atrasadas
Vào vibrar
Em vão.
O agora-instante
No futuro bruma
Irá ressoar
Para cada sim
Também um não.
E para valer, então,
A imprecisão do presente momento
A certeza do desimportante
O segredo do tempo.

NA COZINHA
O peixe serra pisca o olho pra mim
como quem diz, brejeiro:
Depois deste chardonay
Você será
Tudo o que quiser.
Sim, eu creio, amigo.
A sua verdade
Vem do mar
E do calor desta chama.
Mas sou eu, peixe amigo
Que te jogo nesta panela
E te dou sabor.
Tudo isso
só para dizer
ai, o mar,
ai, o amor...

domingo, 16 de outubro de 2011

MAIS UM POEMINHA ORDINÁRIO ( da Série "eloCUbrações dominguEIras"

NA CASA GRANDE

O que me dizem essas paredes velhas?
Que palavras soam suas pedras?
Quantos anos para eu saber?
Na Casa-Grande
Da vila da Lagoa
Não vi fantasma do Tempo
Eu mesma sou
Escrava de mim.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

VIVA FERNANDO SABINO!!!






Se ainda fosse vivo, Fernando Sabino estaria completando hoje, dia 12 de outubro, exatos 88 anos. E hoje eu me lembro dele.
Claro, de sua escrita, poderosa, a povoar de delírios as leituras dos meus 14 anos. Eu lia Fernando Sabino a todo momento, em qualquer lugar: no ônibus, na solidão do quarto, nas aulas de física do colégio... E, na minha imaginação, eu achava que poderia esbarrar com ele em alguma esquina da cidade, no seu jeito distraído e bem humorado, vindo do Rio para Fortaleza para me consolar naqueles tempos difíceis.
Cheguei a escrever para ele. Quando sua carta em resposta à minha chegou lá em casa, a alegria foi imensa e inesquecível. Mandou-me de presente, entre outros, uma edição especial de "O menino no espelho", livro que li aos dez anos, na biblioteca da cidade de Barreiras, na Bahia, quando fiz uma viagem com a família e que ocupa, na minha lista de favoritos, lugar especial.
A seguir, trecho de uma ótima crônica sua, do livro "A falta que ela me faz":

O ESTRANHO OFÍCIO DE ESCREVER
Éramos três condenados à crônica diária: Rubem no "Diário de Notícias", Paulo no "Diário Carioca"e eu no "O Jornal". Não raro um caso ou uma idéia, surgidos na mesa de bar, servia de tema para mais de um de nós. Às vezes para os três. Quando caiu um edifício no bairro Peixoto, por exemplo, três crônicas foram por coincidência publicadas no dia seguinte, intituladas respectivamente: "Mas não cai?", "Vai cair"e "Caiu".
Até que um dia, numa ora de aperto, Rubem perdeu a cerimônia:
- Será que você teria aí uma crônica pequenininha para me emprestar?
Procurei nos meus guardados e encontrei uma que talvez servisse: sobre um menino que me pediu um cruzeiro para tomar uma sopa, foi seguido por mim até uma miserável casa de pasto na Lapa: a sopa existia mesmo, e por aquele preço. Chamava-se "O preço da sopa". Rubem deu uma melhorada na história,trocou "casa de pasto" por "restaurante", elevou o preço para cinco cruzeiros, pôs o título mais simples de "A sopa".
Tempos mais tarde chegou a minha vez - nada como se valer de um amigo nas horas difíceis:
- Uma crônica usada, de que você não precisa mais, qualquer uma serve.
 - Vou ver o que posso fazer - prometeu ele.
Acabou me dando de volta a da sopa.
- Logo esta? - protestei.
- As outras estão muito gastas.
Sou pobre mas não sou soberbo. Ajeitei a crônica como pude, toquei-lhe uns remendos, atualizei o preço para dez cruzeiros e liquidei de uma vez com ela, sob o título: "Esta sopa vai acabar".