segunda-feira, 15 de agosto de 2011

MAIS UM CONTINHO ORDINÁRIO

UM FERIADO

Quando a viu, viu primeiro sua boca. Boca de lábios finos, quase nervosos. Fumando o cigarro se tornavam mais ríspidos. Lábios de Rita, a ríspida.
O quarto era um cafofo. Uma maloca velha, desejada de ninguém. Tinha a percepção completa daquela realidade. Olhava cada canto, cada viga, cada mancha, ofegante ainda da caçada, e constatava – bom demais para durar. Era como uma trégua, bananas e maçãs maduras em plena trincheira de guerra. Era como uma ilha, manancial de água doce e sombra de coqueirais em meio à vastidão salgada e imperdoável do oceano. Rita, naquele quarto minúsculo, escuro e fétido, era um lenço branco no amontoado de roupa suja e mofada. Um lenço com bordas de renda, cheirinho doce de alecrim e lembranças perdidas de infância feliz.
Rita: um cigarro nos lábios finos e vermelhos, olhar perdido de mulher perdida. Tá olhando o quê, otário? Rita, a ríspida. Ficou calado, sem ter o que dizer. Minutos depois, desistiu do café e pediu uma dose, no botequim. Sabe de uma coisa, pensou, hoje vai ser feriado. Mais animado, perguntou, quase doce, aceita uma dose? Óbvio! ela exclamou, rispidamente. Assim era Rita. Rita de Cássia. É, nome cafona, eu sei, ela disse, quando se apresentou. Mas no nome não cabe a pessoa, ele disse. E ela gostou. Mais outra dose, então.
Depois foram ver o mar, encharcados de cachaça e de vontade. Era uma louca, a Rita. E os lábios eram uma delícia, como seus cabelos cacheados e seu olhar de fúria. Como já adivinhava, ao vê-la entrar no boteco, fatigada de mais uma noite de lida. O que você faz? perguntou, só para testá-la, sem coragem de olhar nos olhos dela. Eu sou puta, declarou, devorando o último naco de carne do espetinho de um outro botequim. Caía a noite. A melhor hora do dia. Hora de fazer planos, de se permitir sonhar. Vixe! ele não conseguiu segurar. Ela o encarou, com firmeza. E você faz o que, maioral? Eu? Sou operador de xerox, mentiu. Ah, é? Trabalho numa biblioteca, oito horas cercado de livros e revistas, no mezanino. Ah, é? E que porra é mezanino? Mezanino? É, que porra é essa? É o piso em que trabalho. Fica no vão de uma escada. Ah, é? Então me diz uma coisa, quando alguém sobe a escada, e você sente que tem alguém por cima de você, você goza? Ele riu, quase engasgando com a cebola da farofa. Pois é, eu pelo menos consigo, de vez em quando, explicou Rita, a ríspida.
A melhor de todas, ele já sabia, olhando para ela enquanto seguiam no ônibus. Mil vezes melhor que Lívia, a lívida. Ou Malena, a maligna. Amaria Rita por mil anos, concluiu. Mas era bom demais para durar, soube, com o rosto mergulhado no sexo salgado de mar, um portal de luz naquele quarto sombrio onde ela morava. O melhor lugar do mundo.
As primeiras réstias de luz se adiantavam, tímidas, quando Rita dormiu. Dormia candidamente, e não tinha nada de ríspida, com seus traços suaves, suas linhas perfeitas. Nada ríspida, depois de uma caçada tão furiosa. Um sossego aquilo ali. Uma paz que mezanino de biblioteca nenhum daria. Amaria Rita por mil anos.
Catou as peças de roupas espalhadas pelo chão. Um gato surgiu do escuro, observando sua fuga. E fugiu, girando a chave com cuidado, abrindo a porta, escapando madrugada afora, porque aquilo ali era bom demais para durar.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

POETAS POTIGUARES: PALMYRA WANDERLEY




PITANGUEIRA

Termina agosto. A pitangueira flora,
A umbela verde cobre-se de alvura.
E, antes que de setembro finde a aurora,
Enrubesce a pitanga, está madura.

Da flor o fruto é de esmeralda agora.
Num topásio depois se transfigura,
E, pouco a pouco, um sol de estio o cora,
Dando a cor dos rubis à carnadura.

A pele é fina. A carne veludosa,
Vermelha como o sangue, perfumosa,
Como se humana a sua carne fosse.

Do fruto, às vezes, roxo como o espargo,
A polpa tem um travo doce amargo,
O sabor da saudade amargo e doce.

(In: Roseira Brava)

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

A REDINHA


"Do cais, você olha a boca-da-barra. Do lado de cá, o pontal escuro, com um farol sinaleiro. Braço de pedra, mar adentro, ajudando navios e barcos maiores nas aperturas do canal. Do lado de lá, o dorso branco de prais e morros, manchas vermelho-azuis do casario irregular. Uma torre humilde de igreja. Os cocares impacientes do coqueiral. O território livre da Redinha.
Há um misterioso chamamento que vem das bandas de lá. Vem no vento manso que arrepia o rio. Vem nas quilhas dos barcos e botes que manobram viagens. Vem na conversa dos que chagam com cestas de cajus (pelos fins do ano) e balaios de peixe. O convite chega até você de muitos modos e sob formas diversas. O nome adocicado e leve da praia, do lado de lá, já por si memso é um convite: Redinha."

"Tudo o que nos cerca é tão encantatório e feliz, que vale caminhar. Vamos ao encontro da manhã. O azul por todas as partes mais se acende. Os morros vão dourando as areias relaxadas. O mar começa os suores do grande trabalho que o sol castiga com fulgurações, escamando-o de pratarias infinitas. O homem parece menor, parece um ser, que não fosse o seu sentir e o seu embriagar-se de liberdade, ficaria ali, para sempre, até apodrecer entre sargaços malcheirosos. Mas, na sua ínfima dimensão, carrega um poço enorme onde sofre a queda, o desabar de todas aquelas luzes e cores e sofre o impacto daquele espetáculo, para poder dar testemunho, transformar as palavras, falas e denúncias, emoções, embriaguês enfim."

Newton Navarro ("Do outro lado do rio, entre os morros")

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

PRETENSA POESIA

O sol se põe.
Logo vai escurecer.
Com ele, vai também
Um pedaço de mim.
No que há de bom,
No que há de ruim,
Também eu morro
Para que, no outro dia,
Eu possa também renascer.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

O BAIRRO DO BENFICA


O bairro Benfica, na capital cearense, tem lugar privilegiado na história de Fortaleza. Segundo Vasconcelos Jr. (2000), até os anos 50 do século passado, juntamente com Jacarecanga, o Benfica era o bairro de preferência da burguesia fortalezense, representada por famílias como a do engenheiro José Thomé Sabóia, a família Manso Valente e a família de José Gentil, antiga proprietária dos prédios que hoje pertencem à Universidade Federal do Ceará, como a Reitoria e as Casas de Cultura Estrangeira. A preservação do modelo arquitetônico dos palacetes e mansões, bem como de parte da flora original, contribuiu para que, mesmo com a modernização do bairro – marcada, fundamentalmente, pela presença da Universidade Federal do Ceará, além da construção da antiga Escola Técnica Federal (atual Instituto Federal de Educação Tecnológica – IFCE), do estádio Presidente Vargas e ginásio Aécio de Borba, e, mais recentemente, de um shopping center e das instalações (continuamente suspensas) do projeto de metrô da cidade, o METROFOR – , o Benfica seja uma singular ilustração de que – conforme lembra Vasconcelos Jr. (2000) – o "velho" convive com o "novo" .  

(FONTE: MUNIZ, Cellina Rodrigues. "A experiência pedagógica de uma escritura dionisíaca". Tese de doutorado em Educação. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2009.),

domingo, 31 de julho de 2011

PRETENSA POESIA

POEMA LUNAR 1
Um verso eu queria
Com brilho de lua
De luz que irradia
A verdade nua.
Queria sim, um verso
De palavra plena e vazia
A conter em si o universo
Eu queria a poesia!

POEMA LUNAR 2
Sob lua majestosa
Vou tecendo, fio a fio
Nem verso nem prosa
Mas de mim pedacinho...
Vou tecendo, meio vã
De insanidade a vida
Ela sabe, minha irmã,
Ela apenas, lua amiga.

POEMA LUNAR 3
Um suspiro,
Um sussurro
E o vento frio
Com a noite vêm.
Só ela comigo
E meu murmúrio
E meu delírio
E mais ninguém.